sexta-feira, novembro 03, 2006

Setembro

O texto que segue deve ser consumido com alguma moderação. É sombrio e muito existencialista! Não pretende desanimar nem tão pouco abater estados de espírito... mas sim ser uma luz de esperança!!!

Hoje é dia 13 de Setembro de 2006.
Estou em frente ao espelho do quarto de banho.
Fico surpreendida com o meu reflexo: uma mulher de 30 anos, com as primeiras rugas a se anunciarem; olheiras profundas provocadas pelas insónias que sempre me acompanharam mas que são em cada noite mais constantes; cabelos ruivos compridos e desalinhados (afinal estou a sair da cama) e olhos castanhos ligeiramente esverdeados (mais cansados que nunca)!

Sinto-me presa a este momento e a este espaço!

Sei como vai correr o resto do dia: vou lavar a cara; tomar banho; escolher um tailleur; engolir um copo de leite; sair de casa a correr; apanhar o metro; chegar ao escritório e tomar o primeiro de muitos cafés; embrenhar-me nos mil dossiês que tenho na secretária; depois uma salada ou uma sopa ao almoço em frente ao computador; mais um café; segue-se uma tarde aborrecida de trabalho; finalmente sair às 20h; apanhar o metro para casa; passar no supermercado; tomar outro banho; jantar algo rápido; ver um pouco de televisão; ler e aguardar a noite de insónias!
Tenho vontade de acabar com tudo isto! Não tenho coragem.... Sempre fui cobarde. Tirei o curso que os meus pais queriam, e não o que poderia eventualmente fazer-me feliz! Queria ser artista, perder-me entre cores, formas, nuvens de fumo e balões de ideias! Mas nem as orelhas os meus pais me deixaram furar quanto mais ter um piercing, usar uma carteira de fazenda laranja a tiracolo e ser artista!
Sou técnica superior. Do quê? Nem eu sei... Faço o mesmo todos os dias: colocam-me os dossiês na secretária e são todos iguais uns aos outros. Eu ligo o computador, abro o ficheiro de Excel, introduzo os dados, obtenho taxas e rácios e escrevo um relatório chapa 5 que depois envio para o departamento comercial! Todos os dias o mesmo! Já não me lembro da última vez que obtive um resultado minimamente surpreendente!

O meu primeiro chefe dizia. “Menina Marta, as surpresas só nos complicam a vida! Não há nada como começar um trabalhinho e não surgirem percalços que nos perturbem o plano!” Curiosas palavras deste Senhor, respeitável trabalhador do banco com 25 anos de casa e que numa segunda-feira de Março deixou de aparecer no trabalho! No dia seguinte o escândalo: tinha abandonado o lar, deixando para trás um casamento de 20 anos e 3 filhos adolescentes, para ir morar em Bilbau com um homem 15 anos mais novo! Se isto não é surpresa, não sei o que será um percalço!

De repente apercebo-me que deixei de viver há alguns anos! Ou melhor, eu acho mesmo que nunca vivi: frequentei sempre as escolas que os meus pais queriam; os amigos foram-me sempre impostos por alguém; e dentro desses grupos de convívio social nunca impus qualquer vontade discordante! Aceitei o fim de relações sem grande luta, da mesma forma que aceito derrotas antes de começar a jogar!

Sou fraca e acho melhor medir as pulsações: talvez esteja morta!
Uma vez vi um filme em que a personagem principal, que estava morta se recusava a acreditar nesse seu estado e insistia em continuar com as rotinas dela, importunando a vida de todos que tentavam esquecê-la para seguir as suas vidas!
De repente penso: “Poderei ter morrido durante a minha infância, sem me ter apercebido!?”.

Estou neste estado de hipnose quando toca o meu telefone: só pode ser a minha mãe!.... Não me consigo mexer para atender. Sei que a consequência será daqui a 5 minutos estar a ligar-me para o telemóvel a deixar mensagens histéricas: "Marta Raquel, estás bem? Porque não atendes à tua mãe?!”
Ocorre-me uma ideia infantil: e se a minha nova mensagem de telemóvel fosse: “Ligou para a Marta. De momento não posso atender! Ou fui fazer um novo piercing, uma outra tatuagem ou então fui abortar pela n-ésima vez do meu namorado desempregado e dependente de filmes pornográficos, cerveja e erva! Tentarei responder brevemente, o que é conforme a hipótese da minha impossibilidade de atender agora”.
Adorava ver a cara da minha mãe ao ouvir isto! Já estou a ver: "Luís Francisco acho que a sua filha anda metida nas drogas! Mande o António mudar as fechaduras!!! “ E o Luís Francisco, senhor meu pai, claro que chamaria logo o António e transmitiria a ordem da Senhora Dona Luísa para mudar todas as fechaduras da moradia!

O meu pai é um fraco, um pau mandado da Dona Luísa Gomes Sá. A minha mãe é filha única, muito desejada e tardiamente recebida no seio do lar dos meus avós Ana e Afonso. Eram o casal mais amoroso do mundo: tinham-se casado por amor e sofriam um desgosto diário por a minha avó Ana não conseguir engravidar. Uma manhã de Janeiro mudou a vida deles: a minha avó de 43 anos estava de esperanças. Mimaram aquela bebé rosada de cabelos claros e olhos escuros! Talvez esse excesso de mimo tenha tido um efeito perverso nela: sim, nunca me faltou conforto físico e material mas nunca tive mimos da minha mãe. Nem vontades satisfeitas. Lembro-me vagamente de o meu pai tentar dar-me algodão doce na feira de Verão da aldeia dos meus avós ou de querer oferecer um peluche do meu tamanho... mas a Luísa Gomes Sá cortou logo a ideia pela raiz!

Não me enganara há pouco: era ela ao telefone. O meu telemóvel tocava agora e aquele toque era inconfundível!

Olhei para o relógio do quarto de banho, o último vestígio do Henrique, o meu mais recente ex-namorado, neurótico que achava que o tempo um dia o poderia apanhar! Sentia por isso uma necessidade absurda de controlar o tempo! Disse-me ele no dia em que acabou o namoro comigo: "Acho-te um pouco estranha Marta e não penso que sejas mulher para mim!!" Nem reagi: não valia a pena! Mas agora pensava e se valesse a pena será que eu seria capaz de reagir! Não, claro que não!

No dia em que eu e o Miguel (aquele que achei seria o amor da minha vida!) acabamos a minha reacção mais violenta foi ir à farmácia aviar a receita de Valium! Estive 4 horas a contemplar a caixa de comprimidos e a garrafa de vinho tinto que comprei no supermercado ao voltar para casa da farmácia. Obviamente que não tive coragem! Não consegui responder ao Miguel quando num sussurro ele me disse “Marta e se viesses comigo para Tóquio? Eu acho que podíamos tentar..." O meu silêncio fê-lo sair porta fora sem dizer mais nada. Soube há uns meses que tem dois filhos gémeos de uma japonesa que conheceu na empresa para onde se mudou quando foi para Tóquio! Mas eu não podia ter ido com ele... Estava no Banco há apenas 3 meses. Tinha sido recomendada pelo melhor amigo do meu pai! Eu não podia dizer “Obrigado pela oportunidade, mas agora vou para o Japão com o meu namorado. Ah Do qual obviamente a minha mãe não gosta!”

Ás vezes pensava que só tinha conseguido “autorização” para viver sozinha porque tive de me mudar para a filial do Porto. Caso contrário continuaria a viver em Braga na casa dos Gomes Sá Veloso até ao fim dos meus dias!!!
Os meus pais compraram-me o apartamento, o que queria dizer que eu nunca fui escutada sobre se gostava ou não. “A menina tem de ver que nós somos mais velhos que você. Temos experiência de vida. Sabemos tomar melhores decisões.” Eu limitava – me a acenar positivamente. Claro que a minha mãe se certificou que eu ficava num prédio cheio de velhas coscuvilheiras que lhe ligavam a contar as horas a que eu chegava e as horas a que eu saía. Noite em que dormisse cá algum homem era um dia seguinte de telefonemas histéricos da mãe a ameaçar que me recambiava para Braga! Nunca o fez... mas não foi por oposição minha! Acha que era aí o finca pé do meu pai.

O telefone toca de novo. É desta que tomo uma atitude... saio do quarto de banho e vou directa a ele: arranco o fio sem hesitar! Este assunto já está resolvido!

E agora?
O que se segue?

Volto ao espelho…. Dispo o pijama… Observo-me. À excepção dos sinais de cansaço conservo uma beleza peculiar. Os cabelos ruivos dão-me vida e são a única rebeldia contra a instituição de padrões de beleza que a minha mãe me incutiu! Tenho uns olhos grandes e expressivos, e os tons esverdeados dão-me uma certa graça. Mas o meu ponto forte é o meu corpo. As curvas são muito equilibradas e tenho tudo no sítio certo. Nunca me apercebi antes, mas acho que os homens ficam desconcertados com o meu corpo.

Ligo a água do chuveiro e mete-mo debaixo daquela torrente de água muito quente! Em breves segundos tenho a pele cheia de manchas vermelhas. Começo a sentir o sangue a ferver em mim!!!

Fecho os olhos… e percebo que não consigo pensar…
Mas uma coisa é certa: eu hoje não vou ter um dia comum.

Desligo a água e enrolo a toalha….
Os cabelos escorrem imensa água que ensopa os tapetes da Luísa Gomes Sá. Não me interessa!

Chego ao meu quarto e fico a contemplar o roupeiro! Pego nos jeans – par único no meio de inúmeros fatos clássicos. Comprei-os no último ano da faculdade…. Experimento e vejo que ainda me servem!
Depois de um breve sorriso reflectivo, procuro um top… Escolho um preto, muito decotado com as alças traçadas nas costas! Foi a Vera que mo ofereceu há 3 anos. Nunca o usei… Parecia-me demasiado vulgar!!! Mas hoje não é um dia normal…
Agarro uma carteira, os óculos de sol e o telemóvel…. Desligo-o e volto a pousá-lo! Ficará no apartamento…. Não tenho paciência para ninguém. Hoje não… Porque hoje não será um dia normal….
Coloco os óculos e bato a porta…
Já fora do prédio faço parar um táxi!
"Para o aeroporto, por favor…"

A viagem é demorada. O Porto é caótico na hora de ponta… E as pessoas conduzem de forma senil: ninguém respeita prioridades nem tão pouco linhas contínuas! Parece que entram naquele emaranhado de carros e assumem uma personalidade de robots esquizofrénicos! O taxista que me conduz não é excepção. Pergunta-me se vou viajar ou buscar alguém!
Como a menina não traz mala consigo…”
“Caro amigo, respondo-lhe, hoje não, por favor!”
"Desculpe lá, menina…"


Milagrosamente o homem cala-se até chegarmos à Maia…
Dou-lhe 5 euros de gorjeta e saio sem lhe dar tempo de reagir.

Percorro rapidamente o hall do aeroporto e dirijo-me ao balcão da TAP:
Para onde sai o próximo avião para o qual ainda tem bilhetes?
“Barcelona. Sai daqui a 2h45m.”“Óptimo. Quero um bilhete.”
“Ida e volta?”
“Só ida, por favor.”

3 comentários:

Carminho disse...

«Dou-lhe 5 euros de gorjeta». Esta Marta Raquel é uma burguesa, tá-se mesmo a ver... Ora em com 5 eur almoço aqui todos os dias e ainda me sobra trocos! A isto é que se chama poupar...
OU não fosse eu Carminho, a poupada.

Bom, ao menos tem bom gosto para as cidades, Barcelona pareceu-me uma excelente história. Pode ser que as olheiras venham de lá mais esbatidas!

(agora a sério: gostei Maria. Uma personagem que acorda para a vida aos 30 anos. Prova de que nunca é tarde demais, nem cedo demais ...quando a vontade impele à acção não há quem nos pare!)

Madalena disse...

Barcelona seria, efectivamente, a única cidade, das pouquissimas que conheço, para onde partiria na busca da felicidade e de um recomeço ou começo!!!

Gosto dessa Marta Raquel, até porque o seu nome tem semelhanças com o nome de uma pessoa que me é próxima. E alguns pormenores da sua história também.

até breve

Unknown disse...

Por vezes a "manhã" - em que surge essa inexplicável vontade de partir, de mudar de vida - prolonga-se por dias, meses e - acredito eu - até mesmo anos!!!

Importa é que um dia o passo que tanto necessitamos de dar - mas receamos - seja dado.

Há voos que têm de ser feitos. Nem que sejam de ida e volta e nós estejamos convictos que são só de ida. Há coisas que temos de viver... Ninguém as pode viver por nós .. E se as adiarmos eternamente, talvez nunca consigamos dormir descansados!!!!!