quinta-feira, junho 01, 2006

Beatriz

(significado do nome: aquela que faz os outros felizes; pessoa que dá nova luz às pessoas e aos ambientes)

Trago na minha pasta uns livros e umas revistas científicas. Pesam que nem chumbo! O ombro dói, machucado com a alça da pasta. É apenas mais um Sábado e que já vai a meio, mas a sensação do dever cumprido sabe melhor quando chego a casa e cheiro este odor de mar salgado e a areia molhada salpicada com as algas trazidas pelas marés.
Na linha da praia há gente a correr, animais a passear, pares a namorar, um velho que lê o seu jornal. No Grão d’ Areia, lá ao longe, consigo ver formas humanas em miniatura. Estão com a azáfama dos preparativos da gente que há-de vir. Hoje será a celebração do fim do Verão. Verão esse que passou por mim sem que me apercebesse. Se não vivesse em frente à praia e não houvesse o desassossego da gente e dos carros que me impediam a concentração durante o estudo, nem me teria apercebido da mudança de estações.
No elevador olho-me ao espelho e mal me reconheço com este corte de cabelo. Anos e anos se passaram com os meus cabelos loiros, encaracolados e rebeldes. Mas sinto-me bem hoje ao ver-me com os cabelos escuros e curtos. Mantêm a sua rebeldia – traço do meu ser - os caracóis espiralados, mas emolduram o meu rosto de um modo completamente diferente. Para uns, aparento uma inesperada jovialidade; para outros, este penteado assinala a ruptura com os excessos, com a minha sensualidade manifesta. Sei bem que os meus cabelos foram o atractivo principal de muitas festas! Todos me assemelhavam à Nicole Kidman. Sei bem que destruí relações à custa de uma beleza que não pedi para ter, mas que sempre soube usar a meu favor – a favor dos meus caprichos, como alimento do meu ego, a seiva do meu esplendor diferenciado!
Mas este reflexo que hoje me é devolvido enquanto subo é o reflexo da esperança. Realça o verde dos meus olhos e os traços do nariz. Pequeno e decidido, como sempre me disse a minha mãe. A minha eterna e maior fã! A única que me reconhece verdadeiramente, por detrás desta aparência de ilusão e fascínio.
Tal como o mar que hoje contemplo da janela do meu quarto, o verde dos meus olhos embala-se em tranquilidade. Está renovado, tal qual o mar que agora sossega da perturbação do Verão, das gentes que o invadiam, das vidas que engoliu e escondeu em si. São as ondas que o lavam, ao mar; são as ondas deste novo corte que me lavaram a mim, à minha alma.
Rodo a chave na porta e ouço o palrar por que ansiava. Largo o peso que trago comigo e esqueço o cansaço do corpo. Sigo em direcção a este som, do qual estou cativa. Espreito para dentro do quarto e lá está: a razão da minha renovação, o motivo do reencontro comigo mesma, a luz que iluminou a direcção que me parecia irremediavelmente perdida – “Beatriz!”.
Vê-me e logo me estica os braços, pedindo que me aproxime e que lhe dê colo. “Claro que te dou colo, minha flor! Vem cá à madrinha! Como estamos hoje? Bem dispostas, não é verdade?! Ai, que abraço forte!!! Que saudades tínhamos uma da outra, não era, meu favo de mel ?!”
Responde-me num maravilhoso palrar, com melódicas entoações e a expressão de um pequeno anjo. E tudo se torna secundário, marginal até.
Por este pequeno milagre da vida, tornei-me num milagre de transformação.
No dia em que demorava para nascer, no sufoco da maternidade, resolvi largar o tabaco. Rejeitei a companhia de longa data, sufoquei o prazer que me dava e desprezei o conforto que me dera naquelas longas horas de espera da boa nova vinda da sala de partos.
Até que, subitamente e segundos antes de te dares a conhecer a este mundo, senti o maior pânico da minha vida – o medo de que me rejeitasses, que recusasses o meu colo, enojada com o cheiro de tabaco entranhado nos dedos. Corri ao quarto de banho da maternidade e lavei as mãos até à exaustão. Esfreguei palma contra palma, como um obsessivo-compulsivo com medo da contaminação iminente.
Não te merecia receber desta maneira.
Naquele quarto de maternidade em que os meus olhos caíram sobre ti, sobre a fragilidade do teu pequeno corpo, toda a luz se amplificou. Enrugada e com os olhos arregalados de espanto, deixaste-te pegar ao colo e encaixaste-te entre os meus braços. Não me conseguias ver, é certo, mas eu vi-te tão claramente... Vi que eras o sinal da mudança de tudo e de todos, até de mim! Reencontrei-me em ti, no toque da tua pele macia e rosada, no cheiro da tua nuca, na serenidade do bater ligeiro do teu pequeno coração. Agarraste com força o meu dedo mindinho e pensei que seria pela tua mão que conheceria um novo ciclo da minha vida, o ciclo da renovação.
Permaneceste embalada no meu colo, pela noite dentro, até a enfermeira anunciar que chegara a hora da amamentação. Saí para estares com a tua mamã, no vosso momento mais cúmplice. Confesso que senti inveja da minha irmã, pela primeira vez em toda a minha vida. Pelo presente que acolhia em braços, pela vida que gerara dentro de si, pela perfeição que era parte do seu ser, para sempre!
Nessa noite, na manhã seguinte e nos dias que se seguiram até hoje, não me sais da mente. Estás implicitamente presente, subjacente em todas as minhas decisões, em todos os passos que dou, em todos os cantos. Carrego contigo durante o dia o cheiro das tuas madrugadas mal dormidas e o calor do teu corpo adormecido em cima do meu corpo estendido no sofá. Moldado a mim, como se o conhecesses mesmo antes de te conheceres a ti mesma neste Mundo.
Cresceu força dentro de mim, uma vontade imensa de te fazer orgulhosa de mim, uma ânsia de te acompanhar na vida, como um exemplo de vida.
Por ti, renunciei aos excessos, à embriaguez da noite, à volatilidade amorosa e à indiferença que sentia por tudo e todos. Usava a beleza como íman, e num jogo de manipuladora sedução, gerava dependências. Dependências essas que desprezava, que espezinhava. Regozijava-me com a facilidade em moldar as pessoas aos meus caprichos, para logo de seguida, as largar, as afastar, nem dores de separação e com um golpe certeiro e seco: “Deixei te ter interesse por ti. Penso que será melhor não nos vermos mais por uns tempos. É melhor para os dois. Adeus”.
E, sempre que o fazia, logo sentia uma enorme euforia, a celebração de uma nova conquista que sabia certa por vir. Porque sempre vinham e iam, como as ondas. Em constante renovação. Era nessas noites de ruptura e de (re)início que me ia perdendo cada vez mais, na insaciabilidade do álcool e no prazer de mais um cigarro aceso por mais uma presa fácil que ingenuamente, acreditava seduzir-me, inconsciente de que, em poucos instantes, mergulharia no verde dos meus olhos e sufocaria por entre as minhas madeixas loiras. Em espiral, para inebriar, para confundir, como labirinto do qual não conseguiam achar saída.

Por ti, cortei os cabelos, soltei amarras dos antepassados, libertei e pedi perdão, aceitei consequências, reencontrei o gosto pelo estudo e pela superação, abri horizontes e viajei pela Europa. Reencontrei-me para te poder reencontrar assim: fresca, renovada e limpa. Como este mar de Outono que mora à nossa frente. Com a claridade de uma alvorada e sem o fumo e o disfarce da noite.

Nos teus olhos verdes reencontrei esperança para me tornar numa pessoa melhor.
No teu rosto em constante mutação, encontro semelhanças comigo em bebé. Maliciosamente, coloquei as nossas fotografias lado a lado, para que quem entre comente a nossa inegável parecença. A tua expressão e entrega genuínas. Ah! Como havia mudado tanto!
Enquanto brincámos juntas, esqueci a fome que trazia embrulhada no estômago! Esqueci que o tempo continua a passar à nossa rebelia.
“Vem, minha Beatriz, vamos papar.” Que hoje o dia é só Nosso e nada mais interessa!

Notas: Decidi assinalar o primeiro dia de Junho relembrando e partilhando com todos um texto que escrevi há algum tempo. Primeiro, porque hoje é dia Mundial da Criança e este texto fala de uma criança e da sua capacidade de melhorar a vida de alguém já adulto.
Segundo, porque refere pelo meio um local à beira-mar muito agradável na Praia de Lavadores (em Gaia) - o Grão d'Areia - que foi (e bem!) sugerido pelo André como local de encontro para o cafézinho de amanhã, pelas 22h00.
Terceiro, porque o texto fala de mar, de ondas, de areia, de praia, enfim, de todas essas coisas boas de que já começamos a poder novamente desfrutar... e porque hoje é também o dia de abertura oficial da época balnear.

beijinhos

2 comentários:

Ivana disse...

Também tive uma Beatriz...

Somos todos grãos de areia numa praia.

Já tinha saudades dos teus textos.

Um beijo.

Unknown disse...

Os teus textos são uma delicia... e como todas as delicias viciam-me!!
Adoro a tua escrita, admiro o teu sentir e o teu expressar, essa maravilhosa forma que tens de nos dizer as coisas....
Contas histórias tão limpidas, tão sinceras e tão intensas que me comovem.. e leio-as e releio e volto a ler!!
Em poucas palavras: sou tua fã incondicional!!
Um capricho da vida seria ver-te publicada em papel... não só nestas páginas virtuais!!
Entretanto .. obrigada pela parilha!!!