quinta-feira, janeiro 04, 2007

O método de Maria Rita

Maria Rita fechou o livro e suspirou. Não era ainda hoje que aquele livro ia parar à prateleira. E tudo por causa do método de Maria Rita. Comprava livros, muitos livros. Umas vezes era o título que captava a sua atenção. Outras vezes aquele autor ou autora que sempre a levava a viajar mais longe com palavras de aqui e acolá. Havia ainda aqueles livros comprados de impulso porque o resumo da contra-capa atraía. Comprava os livros, chegava a casa, tirava a etiqueta ou o autocolante do preço, registava a data na primeira página e juntava-o a tantos outros que lá estavam por ler. Só depois de lido é que o livro era colocado nas prateleiras. Tantas e tantos. Prateleiras e livros. O método de Maria Rita. Havia um outro pormenor: a incapacidade de deixar um livro a meio. Mesmo reconhecendo que já não tinha interesse naquelas letras não conseguia deixar uma leitura a meio. Talvez adiá-la por um tempo mais ou menos indeterminado, mas nunca abandoná-la. Era domingo de tarde. Inverno lá fora. Frio, muito frio. Por dentro Maria Rita sentia também um frio estranho. O calor das emoções pode ser enganador, pensava. Já não se permitia ser triste. Nem sequer ser feliz. Aos olhos mais atentos parecia ter desistido de tudo. Ao olhar dos restantes era apenas mais uma mulher com uma vida banal. Maria Rita permitia-se pensar que era um pouco superior aos restantes, porque ao contrário deles tinha abdicado da inútil luta pela felicidade e tinha desistido. Não era feliz nem infeliz. Nem sequer tinha pena disso. Resignada? Talvez. Mas não se importava com isso. Nada lhe tirava o sono. Quando ainda buscava a felicidade num quotidiano de equívocos mais ou menos dolorosos, perdia horas em reflexões que nunca a fizeram chegar mais perto da realidade. Mas num dia, igual a todos os outros, percebeu. O quê? Que nada iria ser diferente naquele dia. Absolutamente nada. Excepto a percepção que tinha de que nada ia ser diferente. Aí residia a novidade. A enorme distinção face aos dias anteriores. Geralmente elogiam-se os dias que fizeram a diferença porque tiraram a pessoa do mutismo ou a impeliram a fazer algo de inovador que mudou o rumo da vida para melhor. Mas aqui não. Maria Rita simplesmente assinalou no calendário o dia em que desistiu. E nem lhe custou muito. Aliás, para ela tinha sido a mais fácil decisão da sua vida. Depois de 29 anos de decisões difíceis, noites sem dormir e dias inteiros de ansiedade tudo acabava de forma simples. Isto é uma espécie de suicídio. Mas pelo menos a Igreja não me renuncia. Sorriu. Pela última vez, talvez. O rosto de Maria Rita não tinha expressividade. Podia ser uma mulher bonita. Morena, cabelo comprido, traços muito sóbrios. Uma beleza muito calma. Mas não parecia real. Sem expressividade, perdia a beleza natural. Simplesmente não sobressaía numa multidão nem num grupo. Agradava-lhe essa indiferença. Aliás, cultivava desde aquele dia a indiferença por tudo. Excepto pelos livros. Não era má profissional. Pelo contrário, muito competente, nunca deixava um prazo não ser respeitado. E nunca falhava. Não cometia erros. Mas faltava a paixão. E essa faz a diferença. Até no trabalho. Para Maria Rita isso não importava. Para os superiores também não, desde que o trabalho ficasse bem feito. Para os colegas muito menos. Desconfiavam que Maria Rita tinha sofrido algum trauma e por isso era assim. Havia os que apostavam em pais ausentes, e um ou outro até arriscavam a possibilidade de algum abuso. Os outros desconfiavam que era mal de amor não resolvido. Curiosamente, Maria Rita tinha sido uma filha muito desejada e sempre muito adorada. Tinha tido uma educação equilibrada, não lhe tendo faltado bens materiais nem amor e afecto. Em relação a males de amor, não tinha tido nem mais nem menos que a maior parte dos mortais. Sabia que nunca tinha amado um homem. Aquele amor que vale uma vida. Mas quantos são os que vivem essas histórias? Maria Rita tinha para ela que muito poucos. E sabia que facilmente a maior parte das pessoas chegaria à mesma conclusão se parasse para pensar. Simplesmente, poucos o faziam. Mais uma vez a mesma conclusão. Poucos.
Livro pousado em cima das almofadas. Maria Rita foi até à cozinha e preparou a água para tomar um chá. Chá de Londres. Gostava da cidade. Tinha-a visitada mais do que uma vez. Voltava lá por um culto à indiferença. Considerava a cidade fria. Em tudo. Sentia-se bem naquele anonimato. Mas sabia que esse sentimento era apenas passageiro, durante aqueles dias de fuga. Também não se permitiria a mais do que isso.
Chá tomado. Nem sequer saboreado. Apenas tomado. Voltou ao quarto, acendeu a luz do candeeiro. Abriu de novo o livro. È hoje que vais para a prateleira. E disse-o com a mesma determinação com que algum tempo atrás tinha riscado no calendário o dia em que desistiu de tudo. A mesma determinação que tinha tido no dia em decidiu que tudo lhe seria indiferente.


PS - Como alguém disse neste espaço, a vida de facto não é cor de rosa. Não é sempre uma viagem agradável e muito cultivadora. Pode ser cinzenta. Pode ser negra. Pode ser transparente. Incolor! Não o esqueço. Luto dia-a-dia para que em cada dia novo eu seja capaz de pintar a minha vida de mil cores. Mas não esqueço que ela pode ser absolutamente negra, ou cinzenta. Nunca o esqueço. Luto para que certas cores tenham pouco palco para actuar na minha vida! Talvez seja esse o caminho!

12 comentários:

Carminho disse...

Mais um texto, mais um sorriso que me ofereces perante o teu enorme talento com as letras, as palavras.

Um xi apertado amiga.

Ivana disse...

É difícil princesa...
Mas o teu texto ajuda.
Obrigada...

Carminho disse...

Olha ainda voltando à personagem não lhe fazia nada mal comer uns chocolatinhos e praticar desporto.

Os níveis de humor regulavam-se com as subs neuro-químicas em falta e ela poderia tornar-se um pouco menos triste...

Palavra de 'Croma'

Carminho disse...

Um dia disseram-me que são os nomes que nos escolhem a nós e não o contrário. Faço a transposição e penso que se calhar poderão ser as histórias que nos escolhem a nós para as contarmos...Para mim o mais importante é termos capacidade de continuar a gerar e criar novas histórias e novas personagens e não tanto pensar de onde vêm estas pessoas que inventamos ou sequer o que têm que ver com o nosso estado de espírito no momento.
Não interessa se vives em felicidade e se contas apenas histórias de tristeza...ou vice-versa. Nem sequer vale considerar se as histórias dramáticas e cheias de existencialismo dão mais ‘pano para manga’ do ponto de vista narrativo do que relatos de mera felicidade e do 'Viveram felizes para sempre'...
Vale sempre a pena contar histórias, porque é muito difícil escrever uma qualquer história, sobretudo se nada se tem para dizer.
Enquanto as histórias te assaltarem é teu dever deixa-las sair. É uma expressão de liberdade, é uma oferta a nós que as lemos.


Uma questão que me intriga... Quem, no acto de leitura, experimenta o prazer mais intenso? O leitor ou o livro?

Unknown disse...

ó pá num sei qual é a resposta!!
esta semana gastei os neurónios que tinham sobrado da passagem de ano a decifrar o anagrama!!
e hoje não tenho aqui nenhum livro. logo à noite pergunto-lhe qual o prazer que sente quando me deleito a desfolha-lo...
brevemente tentarei dar uma resposta.
mas há uma questão: só te poderei dar uma resposta conhecedora dos 2 lados se algum dia puder ser um livro!!! será que depois alguém me lê? E será prazer retirado disso?
hmmmmmmmm ahhhh

Carminho disse...

Depende de que livro fores...
Que livro gostarias de ser? ;)

Madalena disse...

Vem cá uma pessoa dar uma espreitadela e depara-se com isto....

Concordo com a teoria do chocolate, pena engordar, mas o que é que isso interessa. Há quem diga que mais vale ser gorda e feliz do que magra e mal humorada (ainda que na história não tenhas falado nessas características; mas olha uma sugestão, fazer a descrição fisíca pormenorizada, assim podemos dar estas sugestões de alimentação).

Prosseguindo...

Sim apresenta as meninas todas, o que mais pode acontecer é elas se suicidarem todas, o que não é bonito!!!! Mas pode acontecer!!!

Livro, eu, prazer, proveito, não sei!!!!!!!!! espero que seja eu a tirar mais proveito da leitura. Ah e o escritor tb tira algum proveito, ganha direirinho!!!!

Aproveito para responder à pergunta que fizeste à Maria e depois de pensar um kiko apenas e conclui que gostaria de ser um romance, uma história simples e com final feliz.

Beijos

Ivana disse...

Mas afinal que vem a ser isto???

Um Fátima Lopes diário???

Carminho disse...

Sim e com rubricas especiais de fim de semana:

- na Cama com...
- saberes & sabores
- na Banheira com...
- no Jardim com...
e ...Sei lá com...

Unknown disse...

uiuiuiui rubricas de fim-de-semana...
perece-me muito bem!
na banheira com deve ser particularmente educativo!! oba oba
ohhh e anseio por o sei lá com....

Ivana disse...

"Ora então diga-nos lá, minha quida, gostaria de ser um livro? E qual?

Quer dizer, sempre que leio um livro eu entro na história a fundo logo nas primeira páginas, de maneira que à quarta página já 'tou estafada e tenho que recuperar o fôlego e tal e sinto-me assim como que... qual é a palavra.... envolvente, é isso. De maneira que eu, quida Fátima, apreciava bastante ser um livro. Agora qual... Sei lá. Olhe é isso! Podia ser o da Guidinha R. P. que é super chique e nem precisava de me esforçar muito p'a perceber a história, tá a ver? Ai que máximo!Mudava-lhe era a cor que é aquele amarelo canário."

Betty disse...

Que loucura que é este bog! Não pára!

Hoje estava a precisar de um empurrãozito para começar a semana e nada melhor que parar por aqui para carregar baterias.

Por isso hoe começo a minha semana com...as vossas palavras sábias e coloridas.