segunda-feira, fevereiro 06, 2006

O voo das Borboletas


«- Violeta, ainda demoras muito?

Num instante, pousa o lápis, afasta a poltrona da mesa de apoio, pega nas folhas soltas e esconde-as dentro da gaveta do armário mesmo a seu lado.

- Violeta, estás a ouvir? Despacha-te! – gritava uma voz ansiosa.

À pressa coloca o chapéu castanho de abas largas, enrola o cachecol laranja em torno do esguio pescoço, alcança a mala e apressa-se na descida dos dois lances de escada que a levam até ao pátio.
Na descida em passo acelerado quase tropeça no seu próprio pé, que desde o último Outono crescera fenomenalmente.

«sempre apressado, não tenho tempo para nada...se ao menos tivesse terminado o que tinha pensado...agora vou esquecer tudo...ainda posso voltar atrás e levar um bloco e apontar só as ideias chave e assim já não...

- VIOLETA!! Palavra de honra que ficas para trás se não te aceleras o passo! É que nem sequer te dignas a responder!!

... bem, parece que não vai dar...»

- Xim, pai. Tem calma. Chetava a penxá que me tinha chesquecido algo. Não é preciso ficares axim!

Ao olhar para a franzina personagem que tinha à sua frente, Antero não conseguiu permanecer zangado.

- Violeta, não estou zangado. Estamos atrasados para o recital. Sabes como é importante para a Violante, não sabes? Filha, às vezes, podias ser mais rápida nas coisas que fazes...quero dizer, olha-me bem só para essa figura...Nem sequer te penteaste...

Descontraída, como sempre, Violeta, respondeu:

- Xim, pai, chesqueci também de pentear os cabelos. Mas ninguém vai notar, vais ver! E também vamos chegar a tempo!

- Vamos então, puseste o cinto?

- Xim.

Arrancaram e, à medida que o carro se afastava por entre a longa estrada que os levava até ao centro da vila, apenas ficava para trás uma pequena nuvem prateada de fumo que saía do tubo de escape.
No jardim, os ramos despidos das árvores balouçavam com a ventania. Acenavam a Violeta e a Antero, ansiando que regressassem logo, logo, para lhes fazer companhia. E o vento assobiava uma ladaínha ...

Vai e volta, Violeta
Leva e traz o teu encanto
Esse rasto luminoso de cometa ...

A sala estava lotada. Os bilhetes tinham esgotado logo no final do primeiro dia em que tinham sido postos à venda. Criara-se uma enorme expectativa em torno daquele espectáculo.

Chegaram mesmo a tempo. O espectáculo ia começar. Acomodaram-se na fila da frente, reservada para familiares e amigos de longa data. Ouvia-se as vozes da gente que ali estava presente sem, no entanto, se perceber o que diziam, devido à sobreposição das múltiplas vozes. A energia, essa, sentia-se a pairar no ar. Sentia-se alegria, expectativa e entusiasmo.

Com os olhos esbugalhados e brilhantes, Violeta contemplava em silêncio tudo e todos. Nunca antes havia estado num local tão bonito como aquele salão! Repleto de pessoas tão elegantes: homens e mulheres arranjados como príncipes e princesas. Elas com vestidos longos e jóias brilhantes. Eles com fatos solenes e com os cabelos muito bem penteados. De olfacto muito apurado, deixava-se inebriar com a mistura das fragrâncias... das alfazemas, dos jasmins, das rosas...
Eis que, então, se fez silêncio absoluto! Apagaram-se as luzes e uma longa cortina de veludo encarnado deslizou tranquilamente... Lá estava ela, a belíssima Violante!

«Magnífica!» - pensou Antero.

Com um breve aceno e um ligeiro sorriso, cumprimentou a audiência e logo iniciou o bailado. Em pontas, deslizou até o outro lado do palco. Com a elegância e a suavidade de um cisne que atravessava um lago.

- Parece não se esforçar minimamente, como se fosse natural suportar todo o peso do corpo na ponta dos pés! Uma verdadeira prima ballerina! – escutava Violeta na fila imediatamente atrás de si. - Um cisne...

Desliza suavemente
Violante, a graciosa
Como pluma esvoaçante
Vestida em cetim cor-de-rosa

Bailou, girou, rodopiou, encolheu-se, esticou-se, encantou. Até que, subitamente, parou. E deixou-se estar, qual estátua humana, imóvel, com o olhar fixo no vazio, por breves segundos... Até que, desmaiou! Tombou com a leveza de uma pluma, com a elegância do cisne... Instalou-se o pânico na sala! Que havia acontecido com Violante?!
Antero saltou da cadeira e pulou para o palco. Desenfreado, tomou o pulso de Violante e aí, nesse exacto momento, soltou o grito da dor. Não sentiu pulsação. Não sentiu nada. Violante já não se encontrava mais naquela sala...Abandonara o palco (da vida).
Petrificada com aquele cenário outrora cheio de brilho e graciosidade, agora, repleto de dor e miséria, Violeta permaneceu sentada, imóvel e estática.
Não estava a compreender o porquê da tragédia. Viera assistir ao espectáculo da sua única irmã, Violante, oito anos mais velha do que ela, bailarina profissional, cheia de graça e de vida. Viera ver a sua irmã brilhar, recusava-se a vê-la morrer. Queria fugir, esquecer, voltar atrás! No entanto, não conseguia reagir, nem para gritar, sequer para se levantar e tomar o colo do pai que tinha ali mesmo à sua frente, torturado pela dor da perda de Violante, o seu “diamante”, como costumava chamar-lhe, em analogia à sua pureza, ao seu requinte de alma e de gestos, e à harmonia que trazia consigo e que transmitia a todos em seu redor.
O equilíbrio, a harmonia sucumbira ali naquele instante que desprendeu Violante ao ténue fio da vida. À sua morte, à trituração do diamante, à ruptura da harmonia interna – a tudo isso assistiu, impotente. Restava-lhe, apenas, amparar o corpo (agora frágil, outrora forte ao ponto de se suster nas pontas dos pés) moribundo, da sua filha mais velha.

«Por vezes, coisas más acontecem. Acontecem, assim, sem razão, sem motivo. Simplesmente, acontecem e a nós resta-nos apenas apanhar os estilhaços da melhor forma que pudermos».

Estas foram as palavras que Antero conseguiu proferir no velório de Violante. Com o rosto carregado, com mágoa enevoada nos olhos. Violeta estava ao seu lado. Desta vez, sem atrasos, tomara a mão do seu pai e caminharam mudos até à Igreja. Lado a lado, doloridos com a perda, mas ainda com um medo maior de ficarem um sem o outro. Pelo caminho, as árvores vergavam-se com respeito. Também elas estavam de luto. Conheciam Violante desde que nascera, como aliás conheciam aquela família desde que Antero e Magda compraram aquela casa, aquelas terras onde as suas raízes estavam assentes, presas à vida há séculos. Violante dançara descalça, naquele solo, muitas e muitas vezes. A sua dança enchia de harmonia todo aquele espaço. Carregava o ambiente de magia, animação. E as velhas árvores retribuíam-lhe com as mais valiosas ofertas: o oxigénio mais puro, a sombra fresca no Verão sufocante, os frutos mais deliciosos que alguém provara, o amparo dos ramos sempre que se sentia incompreendida pelo Mundo, pelas pessoas. Por vezes, em absoluta tranquilidade, adormecia nos tapetes de folhas coloridas que se estendiam pelo chão.
Violante tinha o hábito de abraçar as árvores. Sentia-se apaixonada pela Natureza, dizia-o por vezes ao seu pai.
Desta vez, os ramos agitavam-se. Acenavam a Violante, em direcção ao céu, em última despedida.

Violeta, desde a noite em que regressara a casa após a morte de Violante, que não conseguia falar com ninguém. Fechava-se no seu quarto, sentada horas a fio na poltrona junto da mesa de apoio, pegava em folhas soltas e escrevia para Violante.

« Violante, onde estás? Porque é que foste embora assim? Violante! consegues ler esta carta? Quando se morre está-se em todo o lado, não é? Agora, estás ao meu lado? Gostava que me respondesses... me aparecesses mais uma vez...
Mas, por outro lado, penso que, se aparecesses, eu ia gritar, ia pensar que estava tola da cabeça, porque sempre me disseste que os fantasmas não existem. Ou será que existem e só dizias isso para que não fosse dormir para a tua cama?
Eu tenho medo do escuro, Violante. Agora que não te tenho, escrevo-te para não ir para a cama. Não quero ir dormir. Tenho medo de acordar e assustar-me e não poder ir refugiar-me na tua cama, no teu calor...»
Noutra carta, dedicou-lhe um poema:

‘o voo das borboletas’

Voam, voam, qual borboleta
Violante e Violeta
Nos céus, de mãos dadas
Da terra vistas, parecem fadas

De lá de cima vêm seu Pai, Antero
Que parece agitado, com medo
Acenas-lhes e grita. É severo?
Não! Apenas diz que as asas não são um brinquedo!

que até para voar é preciso ter cuidado
que devem olhar para a frente
porque, se afinal têm asas
porquê, então, olhar cá para baixo,
(para a gente
Voam, voam, qual borboleta
Violante e Violeta
Nos céus, de mãos dadas
Da terra vistas, parecem fadas...

Afinal foi um sonho...
Violeta acorda,
(assustada,
Violante debaixo de lençóis,
(embalada...).

Numa outra, tentou escrever uma canção. Não conseguiu. Tinha que se vestir, para o velório. Colocou o seu chapéu. O da aba larga, castanho. No bolso do casaco, colocou um lenço de pano – embora soubesse que não iria chorar em frente daquela gente toda. Apenas no quarto se permitia chorar...

... No entanto, soltou-se a lágrima mal Antero terminou o seu breve discurso. E aí, nesse momento sentiu o Arrepio da Evidência

Pela minha pele atravessou um Arrepio
Frio, frio
Pela minha pele atravessou o Desconforto
Penetrou nas minhas veias, no sangue
Navega solto em Mim.

Violeta sentiu-se emocionada com a força do seu Pai e recordou a força de Violante. Apenas uma lágrima se permitiu chorar. Tinha que ser forte como a família!

«- Por vezes, coisas más acontecem. Acontecem, assim, sem razão, sem motivo. Simplesmente, acontecem e a nós resta-nos apenas apanhar os estilhaços da melhor forma que pudermos». »

***

É apenas mais um Sábado de Inverno. Frio, cinzento. Estou na sala de estar, no velho sofá tijolo, abraçada à manta da minha infância. E recordo o desaparecimento precoce da minha irmã. O seu voo prematuro para o outro lado. O lado desconhecido, mas onde sei que voa livremente, onde o tempo não existe. Aqui, na terra, o tempo voa. Onde ela se encontra, a juventude, a felicidade e o sonho são eternos. Aí, nada perece, tudo é eterno. Tudo é gracioso, leve...
A minha irmã vive na Praia da harmonia...

Na praia da harmonia vive serena
com uma papoila presa nos cabelos
Embalada no areal de perder vista
Fascinada pelo intangível do horizonte.

E se hoje o escrevo, se hoje escrevo acerca da perda, dos estilhaços da minha infância é porque hoje acredito verdadeiramente na existência da Praia da Harmonia. Hoje assumo que a muralha em que me tornei se derrubou...ruiu. Foi a forma que encontrei para superar a dor da perda. A perda da minha alegria, da infância. A perda da alegria pela escrita e pelo diálogo. Andei semanas sem conseguir deitar um som cá para fora. Fiquei presa no meio de imensas paredes de palavras que se estendiam até o limite da vista, e senti-me como se nunca mais me pudesse livrar delas. E imaginei que nunca mais pudesse encontrar, nessas paredes que pareciam ter parte com o infinito, nenhuma janelinha através da qual entrasse um pouco da realidade existente no lado de fora! De dia para dia, as palavras que não conseguiam sair, esses blocos de pedra minavam as minhas possibilidades de ser feliz, de atingir o estado de entendimento de mim para com o Mundo, para com as pessoas.
Mas houve um dia em que contemplei a Praia da Harmonia e pude arrancar de vez da angústia!
O dia em que as cores invadiram a minha vida! Em que o meu coração se encheu de palpitações! Em que a minha alma se tornou num arco-íris resplandecente! No dia em que a tempestade serenou e desapareceu de vez.
O dia em que a Íris nasceu e o brilho regressou. O dia em que, através dos olhos desta maravilha, reencontrei o significado da existência e percebi o milagre da vida!
E por isso, escrevi a estória do ‘Voo das Borboletas’.
Para que a minha filha se embale e possa sonhar com a Praia da Harmonia e talvez possa voar com a tia Violante que, tal como um brilho de um cometa, passou veloz pela vida terrena mas continua a dançar em pontas de pés, graciosa a rodopiar ...
Para que nunca receie a morte, nunca receie a perda, nunca se sinta abandonada e nunca se silencie. Para que seja sempre criança, com música dentro de si!
E para que a minha ‘criança’, outrora perdida, possa livremente continuar a voar contigo, minha irmã ... Para sempre borboletas!

2 comentários:

Ivana disse...

Fazes-me sempre voar.

Adoro quando nos presenteias com as tuas palavras conjugadas em textos maravilhosos.

Como quando nos sentimos aconchegadas, envoltas num manto de serenidade... É assim que me fazes sentir.

Beijos sob forma de asas de borboleta para ti.

Unknown disse...

Simplesmente obrigada!!

Lob u

Maria