quarta-feira, outubro 25, 2006

O sexo dos anjos

E no meio do vento que teimava em levantar cabelos, casacos e virar guarda-chuvas, lá cheguei ao local da apresentação do estudo. O edifício, fantástico pela sua localização – mesmo em frente ao rio, era beijado pelas luzes da marginal do Douro, e rodeado de história, de vidas, vozes que vinham das janelas. Bela escolha de local, pensei.

Lá dentro, em contraste com o reboliço do vento que se vivia lá fora, tudo estava preparado para que o trabalho complexo de mais de um ano fosse apresentado de forma eficiente. Afinal, uma iniciativa destas deveria ser bem tratada, acarinhada. Tratava-se de um estudo, uma caracterização sócio-demográfica dos utentes de 3 centros sociais da zona histórica dessa cidade maravilha, o Porto, para além da caracterização dos agentes económicos que nela operavam. Assim, tudo estava a postos. Na mesa de oradores, o representante de duas das freguesias em destaque, os presidentes de junta destas, o coordenador no projecto e a responsável pelo estudo, a socióloga.
Na plateia era possível ver habitantes das freguesias, alguns (poucos, pouquíssimos) empresários, funcionários dos centros sociais, amigos, conhecidos. Os vidros batiam nos caixilhos, como se o vento gritasse lá fora “também quero entrar!”. Estava-se bem ali dentro.

Chegada a hora, foi iniciada a apresentação, com direito a discurso formal, carregado de intervenção social. E, a seu tempo, a socióloga lá começou a falar. Expôs os resultados do estudo de forma serena, profissional, com a sua voz ritmada e agradável. Percebemos que a zona história tem actores fascinantes, que as vidas não se cingem aos números, que as pessoas sabem o que querem e têm voz, se as deixarem falar.

Durante a apresentação, os que assistiam teciam pequenos comentários aos resultados que eram referidos, umas vezes com sorrisos, outras vezes com alguma angústia. Acontece que lá pelo meio, uma voz, algures atrás de mim, começava a fazer-se ouvir cada vez mais. Algo se passava. Alguém estava descontente… Mas a socióloga continuava a sua apresentação, referia as diferenças entre as freguesias em termos de distribuição etária, distribuição de géneros, escolaridade, necessidades referidas, apontava os pontos mais interessantes. E a voz atrás de mim elevava-se cada vez mais…
Culminou esta exaltação anónima exactamente quando os resultados foram todos apresentados e se pretendia iniciar a discussão dos mesmos com a plateia. Um senhor tratou então de interromper o coordenador nos seus comentários reclamando de forma exuberante: “Estou como braço no ar há muito tempo, senhor! Quero falar! Vocês dizem aí essas coisas e depois não nos deixam falar!”. Os olhares, inicialmente tímidos depois evidentes, começaram a vaguear pela sala… e depois lá o vimos. Estava nervoso. Agitado. Parecia zangado. E não adiantou de muito na mesa de oradores tentarem explicar que iria ter espaço para expor as suas dúvidas já a seguir. O agitador de consciências estava mesmo aborrecido traduzindo a sua exaltação com gestos amplos, também devido ao efeito do álcool, a voz cada vez mais alta – “Vamos ter chatices! Isto vai dar que faltar, vai…! A menina pensa que pode vir para aqui, dizer o que disse, e depois ficar tudo bem?! Isto vai dar chatices, vai…”.

Nesta altura, a socióloga lançava olhares interrogativos para as pessoas na mesa e para as suas “âncoras” na plateia. Que raio se estaria a passar? E lá tentou demonstrar que estava disposta a esclarecer a dúvida que causava tanta agitação deste senhor. Por mim, pensei que, de certeza, o senhor estava zangado com o facto de se ter referido que as pessoas interpeladas no estudo tinham maioritariamente escolaridade baixa e pouca qualificação profissional. Era natural esta indignação, não se deveria tomar o todo pelas partes. E tratei de acenar em sinal de compreensão para com a socióloga, como que a dizer “tem calma, o homem está zangado com a vida”.

E eis senão quando o homem decide levantar-se (cambaleando….), e no meio da agitação e do burburinho que se fazia ouvir na sala atira para a mesa: “A menina vem para aqui dizer que há mais sexo na Vitória do que em S. Nicolau?! Mais sexo na vitória?!”.
O burburinho parou e a estupefacção deu progressivamente lugar a risos abafados e olhos arregalados. “Mais sexo na Vitória…”. Na mesa, uns apoiavam a cabeça nas mãos, escondendo o riso teimoso. Outros olhavam o senhor com alguma pena, e outros tentavam acalmá-lo. “Tenha calma homem, não se zangue.”. E não adiantou de nada explicar-lhe que o que havia a mais na Vitória era o sexo feminino, em relação ao sexo masculino. Ele estava amuado. Alguém o segurava e tentava amaciar oferecendo um dos CDs para levar com o estudo, outro alguém propunha-lhe que fosse embora porque estava bêbado, e nós olhávamo-nos e sorriamos com tamanha surpresa.

Dirigindo-se para a saída, parou por momentos em silêncio. Olhou para o chão um segundo, como que ponderando. E aí deve ter percebido a situação. Levantou o olhar para a mesa e explicou: “Eu vou embora, que eu já estou alterado! Falou muito bem menina!”. Saiu.

Falou muito bem sim senhor, a menina socióloga. Fiquei orgulhosa. E acho, cada vez mais quando relembro esta situação, que a vida pode ser fantástica. Este momento, que na hora pareceu ridículo e escusado, serviu para compreender que é preciso ter maturidade para se lidar com uma situação destas quando se está lá em cima na mesa. E que, quando menos se espera, somos confrontados com situações fabulosas de tão hilariantes como esta. Como dizia alguém a quem contava esta situação, parece mesmo que os Gato Fedorento fizeram das suas dentro desta sala.

A caminho de casa dei por mim a pensar o porquê de tanta exaltação. O efeito do álcool não desculpava tudo… De facto, classificar a quantidade e qualidade da actividade sexual entre freguesias não seria correcto. E depois ocorreu-me que fiquei sem saber de que freguesia era o senhor. Seria da freguesia campeã?
(Parabéns Missy. Foi um trabalho fantástico.)

5 comentários:

Carminho disse...

Parabéns Missy, após este relato não restam dúvidas que correu tudo pelo melhor.
Fico feliz por ti, por mais uma etapa superada com sucesso!

Não deve ter sido muito fácil a situação descrita, sobretudo controlar o riso... Mas ainda bem que aconteceu, se não poderia dar tb os parabéns à Ivana pelo belo relato.

:)

Madalena disse...

Confesso que não me recordo, exactamente, o que pensei qdo vi a fúria do senhor, sem saber a razão, talvez qualquer coisa do estilo: "oh meu deus e agora?!".

Foi giro, diferente de todas as situações que até agora tinha passado, e olhem que algumas foram mm bastante caricatas. Acho que consegui manter a calma e conter os risos depois de perceber o que se estava a passar.

Mas mais do que isso, fiquei feliz por esta etapa estar concluída. Senti que no momento em que tudo terminou e as pessoas começaram a levantar-se, estava a fechar atrás de mim aquela porta, e estava com um sorriso nos lábios :).

Obrigada por teres lá estado. Obrigada pelo olhar cúmplice.
Obrigada pelo relato.
Obrigada por tudo.

Unknown disse...

O relato está muito bom!! Prende mesmo da primeira à última palavra! Venham mais...

Quanto ao assunto relatado: Parabéns pela etapa que superaste Missy. De certeza que a superaste com todo o sucesso! Parabéns pela dedicação!
E continuação de mais etapas ... sempre a serem superadas....

Rui Azul disse...

Parabéns Ivana, escreves muito bem mesmo! I mean it... Aliás todas as intervenientes neste blog o fazem. Estou deliciado. Visito-o frequentemente para me deleitar com as excelentes e saborosas descrições, relatos de vivências e crónicas do (vosso) quotidiano. Provavelmente vou meter uma gaffe gigantesca, mas há aí estofo de jornalista (vais-me concerteza retorquir que cursas jornalismo ou letras...). Não sei se já leste alguma das 'short stories' que publiquei no registosautonomos, mas gostava de saber o que achas dos meus contos curtos (são um pouco à la Mário-Henrique Leiria, mas... influências todos as temos, isn't it so?)
Ciao

Anónimo disse...

Sim senhora, perfeita redacção do acontecido. Deste o início deste relato que eu já me sentia lá a assistir a tudo, muito bem redigido este post.
A tua conclusão é fenomenal "- Seria da freguesia campeã?". Bom ... se calhar não era ... e cá tens a razão de tanta indignação, a freguesia deste senhor devia estar excluída :-D. Continua com os relatos que tens muito jeitinhoi... amei...BIS. Ana Trigó