quinta-feira, outubro 19, 2006

Chocolate

Com o passar da idade, supostamente pensara eu, desapareceria este desejo estranho, dependência, aliás, por chocolate.

Chocolate branco, preto, com amêndoas, em gelado, em barras, em forma de pirâmide encrostado com pepitas de mel, bebível ou duro como uma casca de noz.
Certa noite primaveril, combináramos ir até uma esplanada de praia. O cheiro a mar e a renovação de todas as coisas da natureza tornavam este lugar mais apetecível nessa altura do ano. Era tempo de começar a sair, de largar a toca de abrigo invernal!

Seria sentimento generalizado a julgar pela dificuldade em encontrar uma simples mesa para nos sentarmos, mas após uma breve espera, instalamo-nos confortavelmente naquelas velhas e já intimas cadeiras forradas com tecido em azul carregado. Em redor, a sensação de conforto caseiro e até rústico era causada pela estrutura em madeira e pelos acabamentos artesanais que permaneciam à vista de todos, desde o fatal incêndio que consumira, certa vez, este lugar.
Como já era habitual, havia o burburinho de conversas soltas no ar, umas mais efusivas, com risos estridentes, outras mais comedidas, acompanhadas de olhares cúmplices e de carícias manifestas.

Enquanto isso, as raparigas que serviam às mesas esforçavam-se por ser rápidas e eficientes, ao mesmo tempo que percorriam cautelosamente e de bandeja na mão, os corredores labirínticos causados pelo excesso de gente em tão pequeno espaço.
Ao solicitar-me o pedido, dei por mim a pedir-lhe algo com chocolate ao que, prontamente, me sugeriu um chocolate quente.

“É isso mesmo que me apetece!”,

pensei. Assim pedi e, prontamente, uma caneca se apresentou na minha mesa. O líquido, espesso e escuro, largava um pequeno suspiro de ar quente. Apesar de mais amena do que o habitual, a brisa nocturna era fresca.
As conversas que eram atiradas para a mesa eram descontraídas e interessantes, como aliás, sempre acontece entre amigas de há tanto tempo, apesar de muitas vezes não existir propriamente novidades, muitas vezes sabe bem só o facto de recordar acontecimentos, comportamentos, atitudes. Deve ser isso a amizade, afinal de contas – uma grande manta artesanal construída com retalhos nosso e de cada um dos nossos amigos. Apesar dos retalhos serem confeccionados pelas mãos de cada um, o todo que constitui a manta é-nos familiar. As lembranças partilhadas não serão mais do que a troca de palavras entre as diferentes tricotadoras (!) dos retalhos. Os pontos dados são semelhantes, mas os acabamentos, os remates e até os remendos são únicos. As verdadeiras tricotadeiras de uma mesma manta reconhecem bem os pontos dados por cada uma – reconhecem cada erro, apreciam a perfeição e entendem os defeitos. Por vezes, ajudam a corrigi-los.
E era assim que sucedia. Das histórias da faculdade, passávamos para as do trabalho; dessas, para as da primária, para as do dia de ontem…
Escutava e falava, entremeando saborosos goles do meu chocolate quente. Denso, suave, aconchegante e doce como aquelas conversas.
O fim da bebida coincidia com o fim daquela noite. Estava na hora de voltar a casa. O sono fazia-se sentir e os olhos pesavam.
Saímos e metemo-nos no carro.
Pelo caminho, alguém comentou comigo que o meu chocolate quente tinha um óptimo aspecto mas que nunca se atreveria a tomar um por receio de uma reacção alérgica.
Respondi que, de facto, estava delicioso. E pensei:

“ o que seria de mim se não pudesse saborear, cheirar um chocolate sempre que me apetecesse?”

Afinal de contas, não era tão disparatado considerar que o chocolate era parte integrante da minha vida e pensei que quase diariamente, ingeria algo que tivesse nem que fosse uma pequeníssima porção deste elemento de dependência.
Sem esforço e num curto espaço de tempo, atravessaram-me a mente imagens de mim a saborear chocolate: no Natal, enquanto embrulhava os presentes e os dispunha por baixo da árvore, na minha festa de 6º aniversário, enquanto comia os smarties que davam colorido à coleira do meu bolo com a forma de um Snoopie, no cinema ao lado de um amigo especial, em forma de gelado em copo, sozinha a ler o livro “os Maias” em que a voracidade aumentava com a expectativa criada pelo avançar do romance…, na decepção de terminar uma história que imaginara ser feliz…

Em todos esses momentos, ele estava lá – o chocolate.
Ao sair do carro, abri o portão, rodei a chave e entrei em pezinhos de lã no meu quarto.

E, palavra de honra, nessa noite, sonhei que estava a saborear um chocolate. E soube-me muito bem!

Com o passar da idade, supostamente, pensara eu.

Mais um quadrado …

3 comentários:

Ivana disse...

Lambuzei-me toda!

schlapp!

Unknown disse...

2 vicios meus daqueles de que uso, abuso e volto a abusar: mantas de retalhos (conversas onde me perco) e chocolate!

obrigada pela lembrança e pela presença!

Madalena disse...

O fiel amigo das boas e más horas.

Ele está sempre por perto, o chocolate, claro.

Beijos gorduchos

P.s. Esqueci-me de te dizer que adorei os teus contos. Como este.