quinta-feira, dezembro 13, 2007

Mais um pedacinho de 'Trilhos'

Do recomeço (I)


Passava já da meia-noite e o vulto dirigia-se para o carro estacionado em segunda fila, mesmo em cima de uma passadeira. Tinha sido uma sorte não ter sido multada, naquela rua habitualmente povoada por polícias. Só se apercebeu disso quando rodou a chave do Alfa Romeo e se deu conta que tinha largado ali o carro da mesma forma impulsiva e irreflectida que com que tinha ido para casa de João.

«Vá lá, ao menos nisto tive sorte» - pensou, aliviada, enquanto ligou o rádio. Num segundo o carro era invadido pela voz de Bethânia:

Começaria tudo outra vez, se preciso fosse meu amor /A chama no meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão/ A cuba-libre da coragem em minha mão/ A dama de lilás me machucando o coração/ A febre de sentir seu corpo inteiro coladinho ao meu/
E então eu cantaria a noite inteira / Como eu já cantei e cantarei/ As coisas todas que já tive, tenho e sei que um dia terei/ A fé no que virá e a alegria de poder olhar pra trás/ E ver que voltaria com você/ De novo a viver nesse imenso salão/ Ao som desse bolero, a vida, vamos nós/ E não estamos sós, veja meu bem/A orquestra nos espera, por favor/ Mais uma vez, recomeçar... ‘

Levada pela melodia Rita pensava nas coincidências da vida. ‘Mais uma vez, recomeçar...’ - Sim, mais uma vez recomeçara a relação com João. Uma nova tentativa, uma esperança (ainda que moribunda) de que tudo encarrilasse entre ambos.
Da última vez que haviam ensaiado um recomeço, a iniciativa havia partido de João, que lhe aparecera de surpresa no seu apartamento acompanhado de uma garrafa de tinto numa mão e colocara essa mesma música de Bethânia a tocar na aparelhagem.

Rita sentiu um desconforto gerado pela mesma música, pela mesma situação.
Fê-la sentir-se uma idiota. Como se a música fosse presságio de que, mais uma vez, recomeçava algo destinado a ter um fim. Como se insistisse em cometer o mesmo erro.

Depressa parou o pensamento. Se havia coisa em que se recusava a acreditar era em tretas como o destino. A vida era feita de sucessos e insucessos, entremeados com tentativas e erros. Tão simples quanto isso. Estava consciente de que aceitara reatar com João. E ele com ela. O facto de terem tido uma conversa racional e de terem ambos concordado em tentar novamente era, para ela, naquele momento, suficiente. Calou o rádio e conduziu até ao seu apartamento, na Rua 23.
Mal entrou em casa, livrou-se dos saltos altos e enfiou-se no duche.
Relaxada, abriu a cama feita de lavado, retirou a foto de João da gaveta, voltou a colocá-la na mesa de cabeceira e adormeceu.


**

Cerca de duas horas antes, em casa de João:

- Rita, mas porque é que não respondeste aos meus telefonemas?

- Ó João, ando cheia de trabalho, de dead-lines; se perdia tempo em discussões intermináveis e filosóficas, não teria cumprido com as minhas obrigações e, consequentemente, não estaria aqui completamente disponível para te ouvir.

- Rita, é exactamente isso que me deixa fulo! Como é que consegues ser assim tão fria?
Tens ideia de como me prolongaste o sofrimento? Por algum acaso, ocorre-te que estivesse cheio de angústia, mágoa já para não falar a morrer de saudades? Não! Tu, com a tua racionalidade abafas toda e qualquer emoção, gela-te o sangue e pensas: primeiro, vou acabar o projecto, depois, se tiver tempo, falo com o João... É isso que sou para ti? Uma dita prioridade não prioritária? Um passatempo? O filósofo das horas vagas?
Rita olhava João com atenção e com tranquilidade. Escutou-o e quando este terminou disse-lhe:

- João, como deves imaginar, não és a única pessoa na minha vida. Não és o meu único pensamento. As minhas contas pagam-se com projectos finalizados a tempo. Nestas duas últimas semanas, entregar a tempo e horas o projecto da Casa das Artes era a minha prioridade, admito. E não, não penso nada do que dizes. Penso que és uma pessoa que, quando não estás assim de mal com a vida, tens um sentido de humor fabuloso. E muito menos desvalorizo a tua profissão. Sabes que sou anti-metafísica, que não sou dada a introspecções nem lamechices e que gosto do aqui, do agora. Exactamente por isso, estou aqui e agora disposta a ouvir-te com toda a atenção que me mereces. Gosto muito de ti, João. Não o duvides. Mas tens que me dar um espaço para mim e sobretudo, aceitares que sou como sou.

- Rita, sempre o espaço, sempre tu primeiro. E eu, Rita? Interessas-te pelo que sinto?

- João, sempre soubeste que eu nunca poria homem algum em pedestais. Gosto de mim, antes de todos os demais. Sabes disso. Não dramatizes. Sabes que te adoro. Não consegues ser mais racional do que isso?

- Lá estás tu e a tua racionalidade... Sim, até sei que me adoras. E eu também te adoro e uma das coisas que amo em ti é essa tua frontalidade. Mas não me podes abandonar durante 3 dias, não responderes às minhas chamadas e depois vires aqui e dares-me tempo de antena, a teu bel-prazer. Marcaste hoje esta conversa na tua agenda, foi?

- João, tu consegues ser bem mais superior do que isso. Cinismos não, por favor. As coisas são preto no branco: não estamos casados, nem nunca o estaremos. Temos uma relação, porque gostamos um do outro. Tal não implica, como definido desde o ínicio, que abdiquemos das nossas vidas profissionais, das nossas esferas sociais, da nossa vida privada... João, eu não respirei nestes 3 dias! Mal tinha tempo para me alimentar!

- Ok, Rita, até percebo que estivesses muito ocupada. Mas por isso mesmo, porque não vens cá para casa? Assim, via-te nem que fosse a dormir....

- João, paremos! Sabes bem que isso é inútil. Preciso do meu espaço, das minhas coisas.
Cada um no seu habitat, certo?

- Rita, não percebes que sinto a tua falta, amor?

- João, e eu? Porque achas que vim até aqui, desenfreada mal entreguei o projecto ao vereador?! Sabes quantos vermelhos passei? Hã? Tens noção? Vá, demoras a abraçar-me?


João desistiu e entregou-se num abraço a Rita e sossegou. Naquele abraço, aceitara as condições impostas por esta, mais uma vez. Após três dias incontactável, João apenas lhe deixara uma mensagem no gravador de chamadas a comunicar-lhe que após a sua ausência, assumira ‘abandono da relação e que tal marcava o término da mesma’.
Rita demorara ainda 24 horas a responder. Ali, naquela sala, assistia-se a um novo reatar...

Até quando? ’ – pensava João, enquanto se rendia nos braços delicados de Rita....
Ainda assim, Rita não quis dormir lá. Sentia-se frágil com aquela cena, talvez devido também ao cansado dos últimos dias, talvez porque tivesse medo de adormecer, acordar e até gostar daquela casa...

***

O despertar nessa manhã foi custoso. Talvez porque agora Rita havia permitido a si mesma relaxar. Nem sequer colocara o despertador. Sabia que ainda tinha muitas horas de sono para recuperar. Apenas despertou porque o seu corpo assim o estava habituado a fazer, todos os dias, à mesma hora: 7 da manhã. Quer fosse dia de semana, quer de fim de semana. Rita era assim: metódica, rígida. Acreditava que apenas tendo regras básicas podia ser perfeita. Era tremendamente perfeccionista, sobretudo no que dizia respeito ao seu trabalho, aos seus projectos de arquitectura. E, sobretudo, era altamente exigente consigo mesma, mas também para com os outros. E João não era excepção, bem pelo contrário...
Abriu os olhos às sete em ponto e, logo de seguida, tornou a fechá-los e adormeceu. Meia hora depois, um novo despertar e imediatamente, um novo cair no sono. E assim sucessivamente até perto do meio-dia. Até que, decidida, se ergueu e disse para si mesma:

‘Isto assim não pode ser!’ – saltando vigorosamente da cama e com raiva de si mesma, por se ter consentido dormir um pouco mais.

Ainda tonta, dirigiu-se ao quarto de banho mas teve uma sensação estranha. Sentia-se diferente, estava aborrecida, mal disposta. Ela que, independentemente da carga de trabalho, do cansaço físico, costumava encarar cada amanhecer com um sorriso rasgado!

‘Talvez seja fome. Dormi em excesso...e isso deixou-me assim.’ – pensou.

Tomou um duche rápido e vestiu-se. Enquanto preparava a sua taça de leite com cereais, era cada vez mais invadida pela sensação de que algo não estava bem. Sentia-se desconfortável, como se tivesse um sabor amargo mesmo por debaixo da língua.

A comida nem descia como habitualmente. Forçava-se a si mesma a comer.
Fez tudo como de costume, como se de um ritual de tratasse: tomou o pequeno-almoço, roeu a sua maçã verde, pegou na sua pasta de trabalho e sentou-se na poltrona verde virada para a grande janela do seu apartamento, com vista para o Jardim Botânico.
Desfolhava mais uma vez os detalhes do projecto da Casa das Artes. Fizera-o vezes sem conta, porque era demasiado presa aos detalhes. Mesmo tendo consciência de que dera o seu melhor, era como se isso não fosse o suficiente. Era um hábito seu: entregava os projectos aos clientes, de consciência tranquila. No entanto, em vez de os fechar, tornava a abri-los e olhava-os como se fosse o cliente, como se os estivesse a ver pela primeira vez. Percorria cada detalhe como se fosse novidade para si. E voltava a visualizar cada parede em três dimensões. Para Rita, nenhum exercício era melhor do que este. Sentia-se mais lúcida após a entrega de cada projecto, porque já não havia a pressão de um prazo. Raras vezes alterou seus os projectos. Quando os fez, guardou essas alterações para si e nunca as divulgava ao cliente. Assumia que o que entregara era bom o suficiente e que as suas alterações apenas tinham um significado: o de que ainda tinha em si mais criatividade, mais capacidade de ‘visionar’ as imensas e inesgotáveis oportunidades do espaço. Além do mais, criara um nome reputado na praça. Apesar de jovem, já muitas obras públicas haviam sido assinadas por si: Rita de Almeida.

Não estava em condições de voltar atrás em projectos. Admitir retrocessos, era admitir inseguranças, dúvidas, receios. E, isso, Rita jamais o faria. Isso retirar-lhe-ia o prestígio. Seria anti-profissional. E Rita vivia, antes de tudo o resto, para o seu trabalho, para a sua profissão. Corria pelo e para o trabalho. O resto era secundário.

Este seu traço era notoriamente fruto da rigorosa educação que tivera da parte do seu pai, um respeitado engenheiro civil. Ele mais do que ninguém recusava a irracionalidade, o não quantificável, o subjectivo, a preguiça. Quase que se recusava a ter sentimentos. Nunca pronunciara nos seus discursos as palavras ‘alma’, ‘amor’, ‘destino’ ‘sorte’...Para ele, tudo era invenção do ser humano, desculpas – dizia – para não trabalharem, para justificar insucessos, não ginasticarem a mente, o raciocínio. Homem de trabalho, apenas se permitia um momento de lazer durante o dia – ouvir Chopin. Nunca mais que uma hora, por dia.
Deitava-se com o cair do sol, erguia-se com os primeiros raios de luz. Trabalhava e cuidava de Rita. Dava-lhe a atenção que considerava a essencial. Não queria que Rita, apesar de ser filha única, se tornasse mimada nem excessivamente dependente. Impunha-lhe tempos e regras para tudo: para dormir, para brincar, para estudar, para comer e até para falar consigo! Não gostava de ser interrompido enquanto trabalhava e, como tal, das sete às oito e meia, Rita podia conviver com o pai.
Apesar de ser extremamente rigoroso, o pai de Rita não era, porém, desleixado nos afectos. Nutria pela filha um amor e uma imensa dedicação, tal como a que tinha pela mãe de Rita, uma enfermeira que havia falecido durante o parto da sua primeira e única filha. Por isso mesmo, esforçava-se em que o tempo diário passado com Rita fosse de elevada qualidade, ao nível de ensinamentos de vida. A forma como demonstrava o seu carinho expressava-se nos mais pequenos gestos: na flor que sempre lhe trazia e lhe colocava por detrás da orelha, no desatar e reapertar do laço do seu vestido (mesmo que ele já estivesse apertado), no beijo na testa de cada vez que Rita lhe oferecia mais um dos seus desenhos. Todos os dias lhe ensinava algo de novo e sempre em áreas de conhecimento distintos: zoologia, botânica, geografia, literatura, música...
Sabia como era importante que Rita conhecesse um pouco de cada ciência e de cada arte: ‘Só assim conseguirás escolher com rigor a tua profissão’.
E Rita, essa, adorava os momentos passados na companhia do seu pai. Admirava-o profundamente, considerava-o a pessoa mais inteligente do mundo, a sua fonte de inspiração, o seu modelo a seguir. O pai era o Mundo, para si.

Após a atenta análise do projecto concluiu que não havia nada a acrescentar. Fechou a pasta e sorriu.
No entanto, o desconforto... ainda o sentia.
Em vez de pensar sobre isso, levantou-se e resolveu sair. Pensou ‘ Vou apanhar ar, espairecer – ‘Isto passa’.
Agarrou no PDA e na pasta de alças a tiracolo, que a acompanhava sempre e onde levava o seu caderno de esquissos, para sempre que sentisse necessidade, onde quer que estivesse, pudesse render-se à sua paixão – desenhar.
Bateu a porta e resolveu aproveitar o dia, ainda que já a meio.

1 comentário:

Anónimo disse...

Espero... aliás quase que desespero para conhecer a essência da Rita!!
Dessa Rita que um dia disseste poderia ser o espelho de alguém que prezo!! O espelho de alguém também eu sou!