quarta-feira, outubro 14, 2009

A gaveta da nostalgia

Numa das gavetas em casa dos meus pais estão guardadas centenas de fotografias. Ao longo dos anos têm sido atiradas para aquela gaveta, sem ordem, sem data, nem legenda.
E, naquela desordem, foram-se misturando, como se os tempos e acontecimentos também eles se misturassem. Há bastantes álbuns lá por casa, com fotos ordenadas, catalogadas e até comentadas. Sem saber-se muito bem o motivo as fotos daquela gaveta nunca foram dignas de tal cuidado. Não figuram de nenhum catálogo, não têm amarras, estão ali atiradas como pedaços de memória à solta, porém aprisionados naquela gaveta.
Em dias esporádicos, em que paro por um pedaço de tempo na sala e me deixo ali ficar no sofá, abro-a. É como se fosse um chamamento, ao qual eu costumo atender.
Abro-a e deixo-me invadir por toda aquela desordem. Geralmente, começo por pegar num molho de fotos e tento acomodá-las na minha mão. São todas de tamanhos diferentes, umas a cores, outras a preto e branco.
Revejo momentos importantes da vida dos meus irmãos … o baptizado, as comunhões, as brincadeiras registadas naquela casa tão familiar, porém, já tão distante da minha memória. Porque tudo mudou, até a casa. Numa das fotos reparo que a antiga porta de casa dos meus pais, mais velha do que eu própria, é a mesma porta abandonada que vi, anos mais tarde, no armazém da loja do meu pai e relembro o quanto me divertia com o seu batente! Aquela porta antiga, já desaparecida, foi substituída pela modernidade e as pessoas passaram a tocar à campainha. Reparo como era bonita…
Numa outra fotografia estou numa fila à espera de cumprimentar uns primos recém-casados. A cena é caricata: devo ter pouco mais de sete anos e sou a segunda no compasso de espera até ao altar. Entre os adultos, entre as quais a minha irmã, olho para cima e, naquele meu olhar mora todo a estupefacção que só o olhar cristalino da infância consegue albergar. Existem pessoas a chorar à volta e evoco o meu pensamento lá longe no tempo mas ainda na memória: ‘’Porque é que estas pessoas estão tristes se estamos num casamento e isto é uma festa? Porque choram?’’ – interrogava-me eu na altura da foto.
Salto para uma memória mais recente que já nada tem que ver com as fotos – um filme de animação infantil que me levou às lágrimas. Na primeira parte, é-nos contada a história de um casal de amigos de infância, companheiros de aventuras, que mais tarde viriam a casar e a viver a sua história de amor feliz. Como na vida real, este casal vai passando pelas várias fases da vida até que, já na velhice, um deles morre. Subitamente, engulo em seco, a garganta encolhe-se e falta-me o ar. Dos olhos, saltam-me lágrimas, descontroladamente!
(mesmo agora, em que recordo esse momento, fico com os olhos em água)

Não foi a comoção perante aquela história de vida que me fez soluçar; afinal de contas, nem de pessoas reais se tratava! Mas aqueles bonecos animados activaram um botãozinho dentro de mim chamado nostalgia.
Um sentimento de nostalgia igual ao que sinto quando revejo as fotos da gaveta que guardam tempos que não voltam mais! Mas essas geralmente não me fazem chorar porque o instante captado invariavelmente reproduz um momento alegre. É antes a nostalgia vinda dos espaços intermédios que distanciam espacial e temporalmente as fotografias entre si e entre o tempo presente. Os momentos não fotografados,irrecuperáveis, momentos em que, infelizmente, já perdemos algo/alguém nesta vida.
E é essa nostalgia que me faz chorar, a mesma que me assaltou naquele filme supostamente para crianças. Ela estava lá, não à vista desarmada … As crianças não a perceberam assim como não compreenderam o porquê de verem lágrimas a cair pelo meu rosto abaixo. A mais pequena, de oito, olhava-me com os seus olhos cheios de ilusão e sorria para mim, enquanto perguntava porque chorava eu. Respondi-lhe que era assim: uma tonta que chora ao ver histórias tristes! A mais velha, de onze, acenou com a cabeça como se me entendesse mas também ela ainda sem perceber o tamanho da tristeza que carrega uma perda. E, ainda bem para elas, o filme passou com a leveza de uma pluma.
Não há nada mais infinitamente triste e doloroso que a perda daqueles que amamos. Assistir ao seu desaparecimento, precoce ou esperado. O nó na garganta não foi por causa dos bonecos animados, foi por minha causa, por causa dos meus. Tudo o que de mais precioso possuo na vida! O medo da perda que mora dentro de mim e que quero manter adormecido para sempre!
As fotografias da gaveta contam histórias de uma perda. Um sentimento incapaz de ser captado por nenhuma máquina do mundo. Mas que está lá, implicitamente presente em certas fotografias. Até nas fotografias mais alegres captamos a dor muda que se seguiu. Retratam uma ausência física, uma perda tão grande que nunca a conseguirei compreender na sua dimensão, porque nunca a vivi. Apenas dela ouvi falar muitas vezes e, à medida que fui crescendo e também eu perdendo pessoas que amava, fui apreendendo verdadeiramente a sua grandeza. Uma perda que trouxe tanta desordem naquela casa quanta aquela que existe naquele amontoado de fotografias...
NO entanto, a contrabalançar a tristeza à solta naquela gaveta, há também fotos que contam histórias sobre o milagre da vida, sobre a capacidade de um novo ser devolver e gerar novos sorrisos nos rostos familiares.
E é neste misto de felicidade e de nostalgia que devolvo as fotografias ao seu lugar, àquela gaveta que revolve a alma a quem por lá passa. E espanto-me sempre com a quantidade de conversas cruzadas que bailaram dentro de mim, durante aquele curto momento de silêncio ali passado.

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