segunda-feira, janeiro 30, 2006

(De)Lírios & Water Lillies de Monet (as letras e a imagem)

(De)Lírios

Não preguei olho esta noite. Passei-a às claras, no escuro do nosso quarto. A minha cabeça transformou-se em chumbo e os meus lábios na secura de uma ameixa murcha. Ao meu lado, o jarro de água está vazio. Desta vez, tomei dose dupla e nada – os comprimidos já não fazem efeito. Sinto-me sem vontade de nada. Só vejo branco em meu redor, mas não me sinto tranquila. Acho que me sinto até agoniada com este excesso de luz.

É como se tudo na minha vida se resumisse a duas cores – o negro da noite e o branco das paredes, dos lençóis, da luz que entra por entre as amplas janelas…
Uma espécie de código binário apossou-se de toda a minha vida. Só os opostos existem: ora me sinto feliz, ora desolada; umas vezes sei que quero o Mundo, noutras, quero deixar de existir nele.

Olho para o meu roupeiro e tudo é preto e branco/branco e preto. Preto para a noite - porque é sóbrio e elegante, porque seduz como a “Natasha Kinsky, no filme Felina “ - (como me disseste uma vez).
Roupa branca para usar durante o dia – porque contrasta com o negro dos meus cabelos, porque combina com a minha pele alva e os meus olhos azuis.
Lembro-me de teres sussurrado que eu era o teu pedaço de céu, porque era branca e suave como as nuvens, tinha o azul celeste espelhado nos olhos e a escuridão da noite cravada nos cabelos. Foi nesse dia exacto que me rendi a ti. Em que te tornei estrela do meu céu.

Queria tanto poder sonhar contigo, mas a insónia dos últimos tempos não o consente. A minha mente está exausta e drogada em demasia para conseguir ir lá atrás buscar esses pedaços de ser e de nós.

Desde que partiste que não durmo. Não consigo preencher o vazio que deixaste na cama. Ando nela às voltas, tentando manter quente o teu lugar, como se isso te tornasse mais presente. Mas de nada serve. Preciso de ti, do teu abraço, da tua respiração, do teu sossego.

Branco é a cor da pureza. Pela lógica, será o preto necessariamente impuro? Respondo que não. Que é na escuridão, na absoluta cegueira que se descobre a pureza. É negra a cor da manta que a cobre e protege, a oculta e refugia de tudo aquilo que a possa contaminar, perturbar até.

Tal e qual o nosso casamento – a união entre a força e a vulnerabilidade. Entre a brancura do meu vestido e o negro do teu solene fraque. Pelo menos, foi isso que senti no momento em que a minha mão te foi entregue pela do meu pai. Não pensei muito sobre o assunto nessa altura mas, passados os primeiros tempos, esse desconforto começou a surgir e a questionar-me “Alguma vez terás sido dona de ti própria? Ou és forma humana de frágil cristal que simplesmente mudou de vigilante?”

Assaltam-me a mente todas as formas de mulher que gostaria de ter sido. Uma negra de lábios volumosos e cabelos curtinhos, rentes à nuca, enrolada em tecidos artesanais, coloridos e rudes, com os pés gastos pela rua e as palmas das mãos brancas e marcadas pela apanha de algodão no campo. Avassaladora nas suas paixões, quente em todas as estações do ano e com olhos avelã, esbugalhados, que lançam uma infinita doçura em tudo o que contemplam!

Terei certamente um lado sádico, mas gosto do contraste entre o negro da pele e o vermelho intenso do sangue. Imagino o sangue a jorrar pelo dedo que se magoa por entre os campos de algodão. Sem achaques e com naturalidade, esta mulher leva o dedo à sua boca e suga o sangue até este estancar. Por entre a terra e as plantas do algodão, vêem-se gotas de sangue e projectam-se figuras sem nome.
Comigo, nunca nada se passou assim. Raras foram as vezes em que os meus pés provaram a terra. Lembro-me de me ter magoado muito poucas vezes na infância, tal era a vigilância cerrada da minha ama. Talvez um arranhão no joelho que cedeu numa escada trapaceira, ou um pequeno corte na folha branca de papel na qual tentei, em vão e numa casual tentativa, iniciar a escrita do meu diário.
Recordo o fascínio por mim sentido ao ver um menino da escola a sangrar do nariz. Não percebia porque é que isso acontecia, mas divertia-me com a cena da professora sobressaltada, a correr em sua direcção com um lenço de papel para impedir que o sangue espirrasse em cima dos seus livros e das fichas de trabalho.
Chegara mesmo a perguntar à minha mãe porque motivo não sangrava mais vezes e, ela, com a sua fleumática frase habitual: ” Delírios, Maria Madalena… delírios…Vá procurar a sua ama e deixe-me sossegar a cabeça”.
E eu assim ia.
Não deixa de ser curioso o facto de sempre me ter vestido de branco e negro e de nunca ter comprado algo em vermelho. Podia ter comprado aquele vestido que vira numa montra em Nice, cujo escarlate me saltou ao olho. Mas disseste-me que o jantar de aniversário dos teus pais merecia algo mais discreto. Um vestido preto – um básico, ‘’ Intemporal como tu” – disseste-me.
No entanto, vinguei-me de ti nessa noite e ofereci um grande ramo de rosas vermelhas à tua mãe. Frescas, em botão, envoltas em folhas de palmeira e atadas em fio do norte. Sussurraste-me à sobremesa que havia sido “ precipitada” na escolha “Podias ter-me pedido ajuda na escolha, querida. A mamã aprecia outro tipo de flores. Olha, por exemplo, umas violetas ou até mesmo uns jarros. São mais neutros e ligam bem com tudo”. Pois, e passam verdadeiramente despercebidos, com sua aparência insípida e marginal. Da jarra, as rosas passaram para o lixo, logo no dia seguinte. Pensaram que aceitei com passividade a história mal contada de que tinham sido oferecidas à capela, em honra à santa padroeira, em agradecimento da celebração dos 48 anos de matrimónio. Sei bem que o agradecimento tinha sido em forma de aperto de mão e cheque endossado à Igreja. Pelas almas - claro ! E pela dedicação dominical do Padre Fernando… O mesmo Padre Fernando que nos casou debaixo da neblina primaveril, na quinta vimaranense da tua família.

Mas deixa, já te perdoei isso e tanto mais. Não esqueci, mas perdoei.
Agora que aqui estou, com preguiça da vida e com carência de incontáveis horas de sono, olho para a poltrona que está perto da porta do quarto. Mais ao lado, encostada, repousa uma caixa de cartão branca. Estranho… não me recordo de a ter colocado ali, nem sequer de antes a ter visto. O que terá dentro?
Começa a crescer uma curiosidade, estranha até, perante uma simples caixa de cartão branca. Mas o corpo não se levanta para ir lá e saciar esta comichão que sinto!
De repente, uma reserva de energia – das últimas, talvez – toma-me e estou em pé, descalça, junto à caixa. Sento-me com ela ao colo na poltrona. Ao levantar a tampa, eis perante mim a luz que ansiava! Um ramo de lírios brancos! Lírios, a flor da pureza!
Desço as escadas desenfreadamente e dirijo-me ao jardim e lá o encontro – o negro que me protege, o calor da minha cama, a estrela do meu céu, o guardador da minha fragilidade. Havia regressado.
“ Fizeste-me tanta falta. “ – disse-lhe, enquanto repousava no seu abraço.
Não me respondeu que também lhe tinha feito falta a si, mas os (de)lírios disseram-no em todas as vozes.


(P.S.- Acima, um dos quadros que em mim teve mais impacto na longa e saborosa visita que fiz à Tate Modern Museum. Às meninas que em breve visitarão a cidade, lanço este 'teaser' das maravilhas que vos esperam! O texto, esse, para algumas é já conhecido. Resolvi partilhá-lo. Uma ode, digamos, à minha flor preferida, os lírios ...Ofereço-vos então flores...)

Carminho

3 comentários:

Ivana disse...

Uma delícia esta prenda. Obrigada. Muito obrigada.
Não acrescento mais nada. Não é preciso.

Tu és a nossa Li(rio).

Unknown disse...

Carminho minha linda,

Dá-nos mais dos teus lirios e delirios... das tuas histórias.... são elas que nos confortam....

Para quando uma nova história?

Um grande obrigado por esses escritos tão belos.

Grande beijo da tua Maria

Madalena disse...

Lindo, diria eu!
E acho que mais do que o nosso Li(rio) és o nosso (de)Li(rio)!

Beijo