segunda-feira, janeiro 23, 2006

Bacalhau com Natas: O poder conservador do sal (episódio pioloto)

Era uma quarta-feira de Agosto. Em vez de sol intenso, pairava no ar um nevoeiro cerrado e o cheiro a maresia. As Garotas tomavam o pequeno-almoço sentadas numa pequena mesa da esplanada mesmo em cima da praia, sem dar conta da passagem do tempo e esquecendo a velocidade alucinante da jornada de trabalho. Aliás, elas nem sequer sabiam o que era trabalhar! Apenas o sabia a humilde Sãozinha, filha e neta de pescadores, que andava sempre com as mãos cortadas devido à árdua tarefa de tecer as redes de pesca. Sãozinha não conhecia o gosto da carne. Em contrapartida, conhecia todas as espécies de peixe... o cheiro, o paladar e o aspecto de cada um. Com apenas um metro e meio, Sãozinha não passava despercebida. Usava sempre saias de rodas bordadas, pretas. E era habitual vê-la descalça, a caminhar pela areia, de canastra na cabeça a bradar aos veraneantes estendidos no areal:
- Ólhó peixe fresquiiiiiiiiinhooooooo! Benham ber freguêses!! Sintam o cheirinho bom do pêxinhu fresquiiiiiiiiinhooooooo!!!!
No início ainda fez negócio mas, sem nunca ter percebido o motivo, os veraneantes foram desaparecendo daquela praia. E sempre que a viam mudavam de direcção. Sãozinha equacionou duas hipóteses de tão bizarra deserção:
‘seria devido às salmonetas da água de que a Manela Moura Guedes falava na TV? ou será que seriam vegetarianos???’
Perto da praia havia a Lanchonete com música. Tinha vários meninos com um aparelho de som ligado e, enquanto dançavam o rip rop que era tocado no calçadão, brincavam com seus skates ou conversavam sentados nos encostos do banco que estavam em volta ou ainda estendidos sobre a areia. Raparigas de bikini reduzido assediavam a barraca do dono da lanchonete – o galã Bilha! Bilha estava, como sempre, sem t-shirt. Sempre fora seu lema a total transparência pelo que não escondia nada...ou quase pouco tapava.... (narradora cora...)
Bilha conversava sobre o último livro que lera: ‘Almanaque Disney - edição de Verão’ com a sua grande amiga e curtidonha de farras e bubas – Ivana!!! Yéh!! Ivana era uma ganda maluca!!! Com uma crista à punk desde bébé e um dente de ouro à frente para dar mais ‘style’ ao look, era sua tarefa vigiar a praia – tinha tirado um curso de respiração boca a boca no ano passado com um grande amigo de Bilha – o Zé do Pipo, o famoso vendedor de pipocas na Feira popular e que tinha ajudado Bilha na confecção de um dos pratos mais populares da sua lanchonete, o Bacalhau à Zé do Pipo. Certo dia, Zé do Pipo desapareceu misteriosamente. Diz-se que se apaixonou perdidamente pela vendedora de algodão doce e que resolveram montar um negócio de maçãs granizadas na Patagónia...
Porém, Ivana apenas chorou uma lágrima com a partida inesperada de Zé... e que coincidiu com o cortar da cebola para o estrugido do seu jantar dessa noite. ‘Tá-se bem, meus!!’ . No dia seguinte enviou uma mensagem na garrafa de cachaça com que se embebedou na noite anterior e atirou-a ao mar esperando que navegasse até à Patagónia. Dizia o seguinte:
‘ Zé d’ Pipo: Curto-t bué. Pá, tá bisto k curtes algodão doce e k’ eu curto dents d’ouro! Ganda nóia!! Lol ‘
Infelizmente, era o drama, a tragédia, o horror! (narradora assume voz nasalada de Artur Albarran, o espancador tio de Cascais). A garrafa partiu-se de encontro a um rochedo e a mensagem escrita num pedaço de papel higiénico gamado ao WC da lanchonete do Bilha desfez-se... e foi-se alojar no interior de um peixe-aranha.
* * *
Mais adiante no areal aproximavam-se da lanchonete as três grandes malucas: Carminho, Maria e Madalena.
Carminho era a s.n.o.b. oficial da zona. Maria e Madalena revelavam que eram as iniciais para: Só Namoro Originais Brasonados ou, então, para Sou Natural e Ostensivamente Bonita. Vinha, como sempre, vestida com as mais recentes novidades Chanel que a mamã Gracinha lhe trouxera do desfile parisiense. Um tailleur rosa claro, com uma flor de tecido branco ao peito, um longo e original colar de pérolas e uma carteira a condizer. Nos pés só permitia sapatos Manolo Blanik, desta vez de salto raso e rosa velho. Apesar de ser difícil caminhar com tamanha elegância no areal, Carminho comportava-se como se sempre tivesse sido assim. E, de facto, foi sempre assim!!!! Nariz pequeno e empertigado, bochechas rosadas de blush e uma pele branca e imaculada como os seus antepassados Sir John e Madam Piggy Concubine.
Maria, por seu turno, era a rapariga mais ingénua das redondezas. Caminhava de pés descalços sobre a areia e, nos cabelos longos e soltos, levava preso um girassol colhido no jardim da casa dos seus vizinhos da frente. Pouco falava porque estava sempre a sonhar...com o seu príncipe encantado que surgiria montado num cavalo (ou podia mesmo até ser um burrito) branco, a galope em direcção a si, com o intuito de a levar refém e fechá-la consigo na mais alta torre do Castelo de Guimarães. Uma vez achou mesmo que o sonho se estava a concretizar e o seu coração bateu, bateu!! Ao longe, à beira-mar, um cavalo e um jovem de porte altivo...Mas rapidamente se deu conta (principalmente depois de ter colocado os óculos) de que era o Conde Châteaux Blanc (mais conhecido entre a plebe como José Castelo Branco)! Que pena! Nesse dia ficou inconsolável e chorou 30 horas seguidas. Secaram as lágrimas, mas continuou a chorar com as gotinhas de soro fisiológico que fazia escorrer pela cara abaixo... Como depois ficou com os olhos tão inchados como um peixe, teve que ir ao talho e comprou dois bons bifes e pô-los em cima dos olhos. No dia seguinte estava como nova!!
A completar o trio maravilha ia a Má-dá de Madalena, a sensata. Má-dá dava uma ajudinha na lanchonete do Bilha. Era ela que batia as natas para o famoso Bacalhau com Natas! E quem também descascava as batatas para o Bacalhau à Brás. E ainda era ela que fazia as bolinhas dos Bolinhos de Bacalhau!! Enfim, sensata e boa cozinheira... a esposa ideal...não fosse o facto de ter uma secreta predilecção por mulheres... Gostava delas, pronto! Aliás, a sua paixão secreta era Maria, mas nunca o confessou... A sua única insensatez tinha sido enamorar-se pela ‘princesa sonhadora’....
Má-dá jogava búzios e lia o destino nas espinhas do Bacalhau. Dizia que cada posta de bacalhau escolhia a pessoa que o ia comer... e assim devia ser. A comprovar a tese, o maior criminoso da área havia morrido sufocado com uma espinha de bacalhau que se alojou na garganta e o fez arroxear até à morte. Bem feito! Quem o mandou andar a assaltar o WC da lanchonete e gamar os toalhetes de papel e o sabonete líquido!!! Patife!! Escória!! Não admira a alcunha: ‘O Cheirinhas’...Snifava cola e tudo o mais que viesse de encontro ao seu nariz e vice-versa... Uma vez Bilha apanhou-o a snifar o seu Bacalhau à Espanhola e avisou-o :
« - Vê lá se não queres acabar como o João Ratão que caiu no Caldeirão»...
* * *
Estava já a entardecer enquanto as três estarolas (Carminho, Maria e Má-dá) andavam a passear pelo areal. Pararam junto ao mar, de frente para uma zona rochosa e molharam os pés. De repente, Maria dá um gritinho púdico: ‘ Ai! Vejai, vejai! Que lindo! Conchinhas!!’ ao que Carminho ripostou:
‘ Ai querida! Que histeria, que pindérica! Nunca viu cônchas?! que pobreza, que horrore!! A menina é do piôre, deixe que lhe diga!’
E a sensata Má-dá interveio:
‘ Não seja assim Carminho. Está a ser injusta com a Maria. Tem que pesar os dois pratos da balança e alinhá-los antes de atirar pedras aos outros..’
‘ Atirar pedras? Uau, que óptima ideia!!’ – disse Maria.
‘ Têm razão queridas! É super-bem atirar pedrinhas ao mar! Vamos fazer um concurso e ver quem consegue atirar mai longe!’
Como Carminho insistiu que tinha que ser a iniciante do concurso, Maria teve ainda tempo de pegar numa concha e encostá-la ao ouvido para ouvir o mar...Era tão romântica a nossa menina (não fosse o facto básico de ser com búzios e não com conchas que obteria o efeito pretendido! DAH!!!!!!!!!)
E as três da vida airada atiraram pedras e mais pedras e ainda mais pedras, sem parar. Os braços já doíam mas elas continuavam a lançar pedras. E as pernas já tremiam e elas continuavam mesmo assim a atirar pedras! Pedras e pedras, calhaus e calhauzinhos.... Sem parar, como viciadas de jogo, a suarem que nem frangos a rodarem no espeto! Estavam exaustas, os pés a sangrar de tanto roçarem em mexilhões perdidos na areia, mas lá continuavam....a atirar pedras.
(narradora descansa, porque já não pode mais imaginar tanta pedra no ar. Até uma guerra de flechas entre o Robin dos Bosques e inimigos seria menos extenuante. Ou mesmo os arremessos de pedras da invasão de Tróia!!)
* * *
De repente, pára tudo ao som de um:
‘- AAIIIIII! Porra, que levei com um calhau na mona!!!’
Maria, Carminho e Má-dá puseram-se à escuta, tentando perceber a sombra de um vulto que andava no mar, entre as rochas.
Entredentes, Maria sussurrava: ‘- Acho que magoámos alguém ...’

‘- Esteja calada, sua parva!’ – dizia Carminho, possessa e com início de uma enxaqueca! Que maçada!

Até que o silêncio se impôs. Nada se ouvia (quer dizer, nada se excluírmos a barriga de Má-Dá a dar horas p’rá janta...Esta juventude de hoje não tem modos nenhuns!)

Carminho comenta: ‘- O esfarrapado deve ter desmaiado...Vamos retirar-nos com discrição...’

Má-dá chocada disse: ‘- Maria do Carmo, não acredito no que a menina diz. Está a ser injusta com o esfarrapado. Tem que pesar os dois pratos da balança e alinhá-los antes de atirar pedras aos outros..’
Carminho furibunda: ‘ Está a insinuar, por ventura, que fui eu quem atirou a pedra ao esfarrapado?! É que não lhe admito! Com quem julga que está a falar?! Sabe quem eu sou, hum? Hum?’
Maria não dizia nada. Estava com um balão de pensamento sobre si... ‘Seria o esfarrapado o seu príncipe? O seu sapo que teria que ser beijado pela sua princesa? Era obra do destino, esse ganda maluco!’...

De repente, um enorme clarão!!!!
‘- Atão, miúdas! Tá-se?!’

Era Ivana!! No seu booggie!! E ao lado, Bilha!!

Carminho ficou roborizada. Apesar de jamais, em tempo algum, nunca (!!!) o admitir, o certo é que Bilha mexia consigo, revolvia-lhe as entranhas...
Mas depressa transformou o sentimento em raiva!! Que fazia ele ao lado da ‘pé de chinela’!!???
‘-Boa noite jóias! Que se passa?’ Luau?! – disse Bilha... (que, por não ter posto as lentes de contacto, confundiu o colar de pérolas de Carminho com uma coroa de flores havaiana, daí o equívoco...)

‘ Nah...Bilha. Isto cheira-me a leite choco...’ – disse Ivana. ‘Que reina aqui, chavalas?’

Maria, ingénua (dah!!!!) despejou tudo até ao homem esfarrapado, desmaiado no mar, em cima do rochedo.

Carminho fervia por dentro e Má-dá aceitava com sensatez o que o destino lhe trazia... Eram as energias kármicas... (gandas tolas!!!)

Ivana, corajosa fez-se ao mar, com a prancha de surf debaixo do braço (uma vez que com as rochas não dava para curtir ainda as ondas...) e chegou perto do tipo esfarrapado.

‘- Ganda bronca!!’ – disse para si.

Voltou junto do grupo e informou que o tipo:

1 – era não só esfarrapado, como estava roto de todo, com um alto túnel na tola!

2 – estava cheio de sangue, o que era chato porque ia atrair moscas que a iam chatear no equilíbrio em cima da prancha!

3 – estava mais rijo que o seu rabo! (e Ivana, hiper-desportista, tinha a fama e o proveito de ser o bum bum mais durinho das redondezas!

Efectivamente, o tipo tinha batido a bota. Ivana trazia a arma do crime... um paralelo!!

‘Um paralelo?!’- disseram as três suspeitas do crime em uníssono.

‘-Mas nenhum de nós pegou em paralelos. Estávamos a jogar à pedra no charco. Pedra, pedrinha.... pequenas portanto. Isso não pode ser obra nossa!!’– disse Má-dá.

‘Pois, pois...’ - pensou Bilha. Mas, porreiraço como era disse:

‘- Tive uma ideia. Vamos salgar o gajo. Metêmo-lo debaixo de uns bacalhaus que estão a salgar na minha arrecadação da lanchonete. Buté lá!! Animar pessoal!! Tirem essas caras de enterro!!

(Bilha era fixolas, mas às vezes despassarado. As caras de enterro eram adequadas àquela situação. Efectivamente, alguém tinha morrido. Ai, ai, narradora sofre.....)

E lá foram todos (até Carminho) com o tipo ao colo....Era pesado, o estafermo! Chegaram à arrecadação e esconderam-no consoante as instruções de Bilha.
‘- Ele vai ficar fresquinho. É inegável o poder conservador do sal!!!’

(Mais recuado no tempo...voltando à cena e local do crime...Antes de aparecer o clarão dos faróis do booggie da Ivana... alguém estava por detrás do paradão....Alguém que viu tudo. Uma testemunha secreta....

O mistério, o drama, o assassínio:
- Quem estaria no paradão?
- Quem mandou o paralelo ao esfarrapado?
- O que faziam Bilha e Ivana na praia e de booggie? Quem estava a tomar conta da lanchonete e a fritar os pastéis de bacalhau?
- Quem disse à Carminho que um fato Chanel é a roupa ideal para se usar na praia?
- Porque é que Sãozinha não redefine a sua estratégia de negócio e se associa ao Bacalhau do Bilha?
- Será que Zé do Pipo e mulher declaram todas as maçãs granizadas que vendem na Patagónia? Qual é a taxa de IVA na Patagónia? (aposto que deve ser também menor que a de Portugal...)
- Porque é que o sol é quente, o céu azul e o mar salgado?
- Quem sou eu, de onde vim, para onde vou?

(bem, se quiserem descobrir as respostas a esta teia de intrigas, não percam o próximo episódio da sua Novela, aqui na sua TVI (Televisão dos Imbecis)!!!!! Sempre em horário nobre!!!

(música de genérico: Grupo musical e de entretenimento ACEPIPES)

‘Para mim tanto me faz
que comas as peles do bacalhau
e quando te vejo a comer
é um auge...ai é, é, yeah !!!!
Não posso mais,
não tenhas medo
só te quero ajudar a tirar as espinhas!!
Do teu bacalhau!!!
Para mim tanto me faz
que comas as peles do bacalhau
e quando te vejo a comer
é um auge...ai é, é, yeah !!!!’
lá, lá, lá, yeah, ié!!!
E quem não salta não curte bacalhau, olé, olé!!!’

(acaba com solo de guitarra a grunhir...e partem a guitarra no final)




Agradecimentos:

Feira Internacional de Custóias (guarda roupas, fatos imitação Chanel), Câmara Municipal de Matosinhos (pela permissão de filmagens na areia), Bacalhau Ultra-demolhado Pascoal, Bacalhau da Noruega e Bacalhau Ribeirão Alves, Lacas e Maquilhage Loja ‘é tudo a 1 euro’. Boogie cedido gentilmente pela sucateira Moreira & Netos, Lda.


Autoria – Produções ‘Esgotamento Nervoso’

Actores

Sãozinha – Sotôra Pintora Manu
Maria – Sotôra Xhoena
Má-Dá – Sotôra Mercer
Ivana - Sotôra Cláudia
Carminho - Sotôra Li
Bilha – Sotôr Davide

Figurantes – Bacalhaus e Paralelo


(31 Agosto 2005)

1 comentário:

Ivana disse...

A emoção transborda-me.... Duas lágrimas rolaram pelo meu rosto. Liiiiiindo!!!!!