O segundo dia na selva começou, como previsto, bem cedo. Pontualmente, fomos despertados pelo acender da luz da lanterna que estava por cima das nossas cabeças. Era sinal de que o gerador havia sido ligado. Entretanto, ainda a esfregar os olhos, fomos surpreendidos por um ‘’Good Morning’’ à porta do bungalow. Era um dos empregados que nos trazia café ou chá. Para o efeito, vinha munido com chávenas, uma termos com água quente e com saquetas de café e de chá. Optamos pelo café e não deixamos de reparar que uma saqueta foi repartida pelos dois. Nisso resultou um café que mais parecia água suja. Mas estávamos na selva e, dadas as circunstâncias, não nos podíamos queixar.
No quarto de banho, um novo visitante. Desta vez, um lagarto passeava pela parede do chuveiro. Entre este e o aracnídeo preferíamos o primeiro. No entanto, tivemos também de lhe pedir que se retirasse que o quarto de banho era um espaço onde se quer privacidade!
E assim tomamos um duche para despertar. Com água quente mas, que por mais que cerrássemos a boca, tinha um odor e sabor a ferrugem. Ou não fosse ela proveniente de reservatórios e não das canalizações que dispomos no nosso ‘mundo moderno’.
Saímos para o pequeno-almoço onde fomos surpreendidos pela positiva: panquecas, ovos, torradas e geleias. Muito saboroso, mas eram quase seis da manhã e o Chefe estava a nossa espera! Apenas um pormenor nos incomodava: a chuva torrencial! Chovia desalmadamente!
Abeiramo-nos dele e perguntamos:
- Are we still going to the river? – perguntamos.
- Yes! – disse ele num tom seco e como quem diz, porque não haveríamos de ir?!
- Isn’t it dangerous because of the rain? – insistimos quase a medo…
- It depends what you consider to be dangerous … - respondeu em tom sarcástico.
Perante estas palavras, percebemos que na selva não existe condescendência nem mariquices. Se está escrito no programa que das 06h às 11h haverá um safari de elefantes seguido de travessia de canoa no rio, esteja chuva ou sol, isso é irrelevante!
E lá fomos nós, quatro montados num elefante, com um guarda-chuva a abrigar-nos a cabeça, que o resto do corpo iria ficar inevitavelmente ensopado, já o prevíamos. O desconforto surgiu várias vezes ao longo da comprida viagem que fizemos de elefante. A chuva, apesar de quente, teimava em continuar e sempre que havia uma descida acentuada de piso, a água acumulada no plástico atrás de nós, escorria e ensopava-nos as calças! Entramos na selva densa e começamos a avistar impalas que surgiam e desapareciam num ápice! Com a mesma fugacidade, vimos javalis e macacos. Em marcha lenta, o nosso elefante lá seguia caminho, uma caminho que desconhecíamos, um caminho que nos conduzia a parte incerta, sem que soubéssemos quanto tempo demoraríamos a lá chegar. O desespero começou a instalar-se passada uma hora e meia, em que já cansados de chuva, da lassidão do animal e da – confessamos – falta do que ver na selva para além de árvores e arbustos, começamos a mexer-nos no assento e a comentar entre dentes que já bastava de passeio para aquela manhã. Queríamos perguntar se ainda faltava muito, mas encolhemo-nos perante a frieza do ‘’Comandante’’. Depois daquela resposta de manhãzinha, preferíamos esperar para ver.
E eis que finalmente chegamos ao Rio! Um rio da cor da lama, que corria feroz! A agitação das águas era tanta que nem queríamos acreditar quando percebemos que o guia mantinha a intenção de nos levar de volta de canoa! Fomos possuídos pela ansiedade e já no solo, depois de nos terem mandado descer do elefante, não conseguíamos controlar o riso quase maníaco de quem não quer acreditar no que estava prestes a acontecer. Entraríamos numa canoa de madeira que mais parecia estar a desfazer-se – nós, o Comandante-guia, mais dois homens que conduziriam a dita cuja. O pânico instalou-se mas lá entramos. Desde o momento em que subíramos para o lombo do elefante que a escolher o que fazer deixara de ser uma opção.
Surpreendentemente, quando estávamos já a bordo e em pleno rio, a corrente parecia ser fraca comparativamente com o que se via de fora. Ainda assim, sabíamos que era o rio quem nos conduzia, não os homens dos remos partidos. Já calmos, apreciamos a paisagem. As duas margens repletas de vegetação faziam lembrar cenas dos documentários que passam sobre a Amazónia. Não havia dúvidas que estávamos em plena selva! ( a essa altura também dúvidas já não as havia nem poderia haver…)
Chegados novamente a terra, reparamos que estávamos exactamente no mesmo ponto de onde partíramos quando nos esperavam para nos conduzir ao Lodge.
- Mais uma hora em cima do Babar! – dissemos. Mas, desta vez, já conhecíamos o caminho e isso fez com que a distância encurtasse.
Pelo caminho, a mesma lassidão, a mesma ausência de animais. Apenas rinocerontes. Concluiríamos no final que o Temple Tiger Lodge se deveria chamar Temple Rhino Lodge…
Chegados, ainda nos reservariam uma outra actividade. Estávamos exaustos, encharcados, enlameados, mas lá fomos, semi-arrastados. Esperava-nos um Elephant Briefing, como lhe chamaram. Conhecemos o espaço onde os elefantes eram tratados e onde dormiam, quer eles, quer os seus tratadores/ condutores. A introdução foi breve: basicamente aprenderíamos as diferenças entre os elefantes asiáticos e os africanos e, no final, ser-nos-ia feita uma pergunta para saber se tínhamos estado atentos! Tal e qual! Este Comandante-Guia não estava para brincadeiras mesmo e por isso lá ouvimos o homem com muita atenção (ou pelo menos fingimos isso…).
Do que ouvimos, ficou a ideia de que, apesar de obedientes e muito bem treinados, se um daqueles elefantes quisesse, num repente podia arruinar com aquilo tudo. Bastava-lhe acordar o selvagem adormecido que havia dentro de si. Isso impõe respeito. Deu a ideia de que basicamente eles estavam ali porque queriam… Não seria bem assim, mas pronto. A desigualdade de forças é inquestionável.
De regresso ao Lodge, fomos avisados que às cinco da tarde, que era quando faria menos calor, nos esperava um novo passeio de elefante. Veríamos … - pensamos.
Após o almoço e um merecido descanso, decidimos que não íamos novamente selva afora. Já que seria o nosso último dia ali no Lodge, aproveitaríamos para explorá-lo e descansar! Fomos então até ao deque de observação dos animais. Uma varanda fabulosa para um enorme lago. O céu estava novamente limpo e o sol brilhava novamente. O dia estava com uma luminosidade, um dourado ímpar! Sentamo-nos e desfrutamos daquele cenário, daquela paz únicos. A magia daquele lugar foi dos melhores momentos que teríamos nesta viagem.
Mais tarde, jantaríamos já acompanhados com novos hóspedes. Um casal que em nada condizia com aquele lugar. Ele olhava enojado para a mesa e para a comida, recusando a comer o que quer que fosse, á excepção do arroz e do vinho que insistentemente pedia para lhe trazerem. Ela viria, no dia seguinte para o safari de elefantes, vestida com uma mini-saia de ganga e com um top com lantejoulas, parecendo ignorar que na selva a vegetação não se afasta à nossa passagem! Não contivemos o riso, sabendo o que os esperava. Será que o Comandante-Guia lhes iria passar um raspanete por mau comportamento?! Nunca o saberíamos, mas como eram arrogantes para com os empregados do Lodge, resolvemos não os avisar das aventuras pelas quais passariam e para as quais deveriam ir pelo menos preparados com meias e calças!
Essa noite foi passada em branco. A ansiedade de regressar invadiu-me a mente. A noite cerrada e os múltiplos sons dentro e fora do bungalow acelereram-me o coração e, de repente, só dali queria sair! A diferença horária fizera com que dormisse nessa tarde e na hora de dormir, não conseguia pregar olho. Sem luz e com as sombras as bailarem nas janelas que rodeavam o bungalow, fui invadida por um sentimento de insegurança, pelo medo! Medo de não sairmos dali sem que nos acontecesse algo de mal. Por mais estranho e paranóico que possa acontecer, nessa noite não conseguia pensar noutra coisa. Que se nos acontecesse algo de mal, não tínhamos escapatória. Não havia telefones, pelo amor de Deus!
As cinco da manhã finalmente chegaram na noite mais longa de toda a viagem e a satisfação por ir embora era enorme! Pelo caminho que viemos, pelo caminho regressamos. O elefante conduziu-nos novamente à canoa e, já nela, o pequeno-almoço deu voltas no estômago mais do que consegui suportar e o vómito foi novamente inevitável. Desta vez, já nem embaraço senti, tal foi o alívio imediato.
Ao longe, na outra margem, avistei com enorme satisfação o Yeti e a sua ‘irmã’. Sorriam e acenavam-nos. Apesar de terem fracos recursos, não deixamos de comentar a excelente logística daquela viagem. Sempre prontos, pontuais e eficientes. O que faltava ali, no lodge, e mesmo até em Kathmandu, era quem ali investisse a sério. Alguém que lhes desse o know-how do turismo a que o europeu está habituado e que lhes desse também dinheiro, claro está, para a melhoria dos alojamentos, e aquisição de novos equipamentos. Ainda havia muito trabalho braçal desnecessário. Certo que empregava pessoas como por exemplo os dois ‘’canoeiros’’ mas será que o turista mais ‘’exigente’’ estaria disposto a arriscar-se a atravessar o rio nas condições em que o fizéramos? Provavelmente não …
Despedimos-nos do Royal Chitwan National Park e rumamos a Pokhara – o último destino antes de regressarmos a Kathmandu. A viagem seria mais curta.
Chegamos ainda de dia, fizemos o check-in e resolvemos de imediato ir espreitar o local. Antes, tempo para um telefonema para casa, que havia já alguns dias em que não dávamos nem recebíamos notícias do exterior. A selva isolara-nos do mundo completamente!
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