domingo, fevereiro 11, 2007

Olhos doces de pecado ou olhos claros sem vida? - Uma reflexão!

Está quente. Um calor estranho. Muito fora do normal mesmo. Eu nunca me sinto quente. Mesmo nos melhores dias o calor do corpo não é suficiente para me aconchegar a alma. Hoje, uma brisa quente faz balançar as cortinas brancas e imaculadas deste quarto onde estou deitada. O ar circula neste espaço e roça no meu vestido preto. Tirei o lenço da cabeça. Também é preto e cobre os meus longos cabelos cor de amêndoa. Procuro descansar. Fecho os olhos e nada. Não consigo sonhar. Não consigo imaginar. Não consigo sair deste espaço para onde me remeteram. Até a capacidade de voar num mundo imaginário de cores e sabores me tiraram. Não, estou errada. Ninguém me retirou nada. Nem a mim nem a nenhuma de nós. E porquê? Porque para algo ser retirado a alguém essa pessoa tem de ter possuído esse algo, seja um objecto, um pensamento ou um sonho. Portanto, tenho de ser justa. Ninguém me retirou nada. Simplesmente não me deram a conhecer essa capacidade. Mas na verdade a culpa é minha também. Poderia dizer que tenho os meus direitos e que quero conhecer e sentir como outras fazem. Mas suponho que seria errado. Esta vida é passageira e poderia deitar tudo a perder por um capricho. Tenho de ser submissa e respeitosa. Só assim encontraria alguém que me aceite para ser sua. E depois é viver os dias, um a um. Todos iguais numa calma que desconfio nunca me aconchegará. A minha irmã mais velha tem 20 anos e tem 3 filhos. Três homens. Que sorte a dela. Eu espero o primeiro filho. Gostava que fosse rapaz. Tudo é mais simples para eles. O meu marido é irmão do meu cunhado. Homem trabalhador. Temente de Deus. Sim, tenho tido sorte. Só queria por vezes não ter de suportar tanto negro sobre mim. E este calor estranho que agora me invade o quarto é insuportável. Mas sinto que não passará tão cedo. E ainda tenho de ir à rua tratar das compras da casa. Respiro fundo e levanto-me. Devagar. Com muito esforço e algum equilibrismo consigo sentar-me na cama. A barriga começa a incomodar-me um pouco. Deus me perdoe a blasfémia. Amarro o cabelo o melhor possível e prendo o lenço preto com o alfinete. Levanto-me devagar. Guardo as libras que o meu marido me deixou. Pego a lista de compras. Tapo o rosto. Só os olhos se vêm. “Olhos doces de pecado” ouvi uma vez o meu cunhado dizer. Não percebi. Bato a porta do quarto e saio para a rua. Está mesmo abafado, mas todos os outros parecem ter frio. Fecho os olhos e inspiro. Começo a andar o mais depressa que posso. Não tenho muito tempo a perder. Ainda estou longe do supermercado e se não me despacho fica tarde.


Nota – A zona onde eu e o Pedro moramos tem muitas etnias e nacionalidades. O que mais vemos são mulheres de vestidos compridos; mulheres de vestidos compridos e lenços nos cabelos; mulheres de vestidos compridos e lenços nos cabelos e nos rostos. È impressionante. Até meninas pequeninas usam os lenços. Ontem vi uma menina que não teria mais de 5 anos com o lenço rosa na cabeça. Mas o que me afectou e inspirou a escrever este pequeno texto foi uma mulher que vi nos correios a semana passada. Toda vestida de negro. Só os olhos se viam e um pouco de pele. Uns olhos muito claros, quase sem vida. E uma pele tão transparente. Na altura não liguei particularmente. Mas mais tarde em casa lembrei-me daquele olhar. E tive de escrever. Não quero perturbar ningém. Não pretendo emitir qualquer juízo. Não consigo sequer. Apenas quis reflectir.

3 comentários:

Ivana disse...

Mundo de olhares este, cheio de presenças únicas.
Enquanto olhamos somos olhados...

Madalena disse...

A diferença e a variedade são estímulos para a reflexão.

Mais um registo que de facto nos transporta para o mundo dos valores, da cultura, das referencias, até da religião e do misticismo.

A vida de todos nós é tão diferente mesmo quando temos referencias semelhantes, o que fará quando o mesmo não se passa.

Olhos doces de pecado, sem dúvida!!

Carminho disse...

Li e lembrei-me da senhora que vimos na London Bridge de burka e para quem laber um gelado foi tarefa super complicada...

Só penso que sendo tão dificil comer um gelado, como será o resto? Fácil???

Está visto que não sou adepta de uma cultura que (en)cobre as mulheres. Paciência, não sou perfeita. Eles também não... Peace!