sexta-feira, março 02, 2007

Valéria

Se me perguntarem qual a parte do dia que prefiro, respondo sem hesitar: o início da noite. Naquele momento em que estou na cozinha a preparar o jantar e a Valéria está a lavar ou a passar a roupa, a arrumar e arquivar papéis ou a fazer uma das mil e uma “tarefas da casa”. A Valéria odeia cozinhar. Diz que depois de preparar uma refeição perde a vontade de comer. Por isso cá em casa a cozinha está por minha conta. Confesso que me agrada, mas para ser eu o responsável pelas refeições da casa tive de trocar de turno. Trabalhava no hotel no 4.º turno, das 19h até à 1h da manhã. Nessa altura, a Valéria nunca preparava o jantar: aquecia uma sopa ou comia uma peça de fruta e ia dormir. Desde que trabalhava no escritório de arquitectura, saltava o almoço na maior parte das vezes. Esta alimentação tão débil e todo o esforço físico e mental que o novo emprego exigiam dela começaram a ressentir-se num rosto cada vez mais desprovido de vivacidade. Comecei a ficar preocupado com o ar pouco saudável da minha mulher, por isso, decidi mudar para o 2.º turno. Para além de sentir necessidade de cuidar de Valéria, a verdade é que sentia falta dela. Comigo a fazer o último turno do dia nunca nos víamos. Eu chegava a casa às tantas da madrugada e apenas podia contemplar o rosto adormecido de Valéria. Quantas vezes me apeteceu acordá-la para fazermos amor. Muitas. Imensas. Quase todos as noites quando chegava a casa me apetecia fazê-lo. Vezes sem conta vim no autocarro para casa a idealizá-lo. Só o fiz uma vez. Prometi que nunca mais o faria. Ensonada de tão abrupto acordar, em momento algum, Valéria pareceu estar consciente do que fazíamos. Ao fim de 5 minutos desisti. Com uma dor física e psicológica. De manhã, Valéria saía cedo, por volta das 7h30. Eu nem me apercebia dos saltos altos no hall de entrada. O cansaço do trabalho da noite anterior não me permitia sequer acordar para lhe dar um beijo de bom dia. As semanas eram uma sucessão de desencontros, e nem aos fins-de-semana conseguíamos compensar todo o tempo não partilhado. Enquanto Valéria procurava emprego – nos 2 meses que se seguram ao fim da parte académica do curso de arquitectura - os fins-de-semana eram uma delícia. Mas o novo trabalho dela - o estágio que ela tanto precisava para acabar de vez o curso e poder assinar os projectos - exigia tanto que os fins-de-semana eram como dias de trabalho: o despertador tocava apenas um pouco mais tarde que o habitual, ela tomava um duche e desdobrava-se entre livros, programas de computador e projectos em curso. Só não se escapava de comer porque eu insistia com ela tantas vezes que para não me ouvir mais, lá acedia às minhas súplicas.
Ao fim de 2 meses em que quase não via a minha mulher decidi que isto não podia continuar. Um de nós teria de mudar os seus hábitos, a sua rotina, os seus horários. Tínhamos de ter tempo em comum. Senão que sentido fazia estarmos juntos? Valéria não poderia deixar o seu trabalho. Tínhamos lutado tanto para que ela conseguisse um emprego decente que não podíamos deitar tudo a perder agora. Tinha de ser eu. Um domingo ao fim da tarde olhei para Valéria que tinha tirado meia hora de intervalo e folheava uma revista no sofá e disse-lhe:
“Vou pedir para mudar de turno lá no Hotel!”
“Porque?”
“Porque já reparaste que não fazemos nada em comum? Nem jantamos juntos aqui em casa. Eu nunca estou quando tu estás. E tu nunca estás quando eu estou!”
“Mas André, sabes o quanto estes primeiros meses no escritório serão exigentes para mim. Mas são muito importantes. Eu tenho de dar o meu melhor. Se eles gostarem do meu trabalho e da minha atitude eu posso ficar lá no fim do estágio. E aí, amor, a nossa vida será tão melhor!!! Ganharei mais e poderemos finalmente começar a viver uma vida melhor.”
“Sim, eu sei. Mas eu não aguento os meses que ainda faltam. Sem te ver todos os dias, te abraçar e beijar, sem te amar. E com estes malditos horários não dá!
Que dizes? Concordas?”
“Sim, mas os fins-de-semana continuarão a ser como são!”
“Sim, eu sei. Por isso vou passar a trabalhar ao fim-de-semana também. Assim, junto dinheiro. Tenho direito a uma folga por mês. Escolhemos o dia em que estejas menos ocupada e tentamos estar juntos, sem o teu trabalho.”
E assim foi. Passei a chegar a casa a meio da tarde. Tenho tempo de descansar, mesmo nos dias em que vou esperar a Valéria ao trabalho. Sabe-me bem rodar a chave de casa com ela ao meu lado. Enquanto ela toma um duche trato de arrumar algumas coisas da casa. Bem, quando não me esgueiro para o quarto de banho e fico a vê-la sentado na cadeira de vime que crompramos no mercado de Brick Lane. Ela cora sempre. Estamos juntos há tanto tempo e conheço cada canto daquele corpo e ela cora sempre que fico a vê-la no banho! De seguida ela vai tratar daquelas tarefas domésticas e eu preparo o jantar. Vemos as notícias, e começamos um filme que nunca acabamos porque a vontade de namorar é tão forte. E de manhã cedo sou eu que saio quase em bicos de pés para a deixar dormir mais um pouqinho. Aos fins-de-semana nada mudou. Mesmo no meu dia de folga é impossível desligar Valéria do trabalho. Mas eu entendo isso. Aproveito para ir até ao parque e visitar um ou outro museu. Volto a casa a tempo de preparar o jantar. Gosto dos jantares de domingo. Para mim é um alívio a nova semana que começa: Valéria é minha à noite. No fim-de-semana está tão absorvida no trabalho que ainda bem que estou a trabalhar num turno duplo. Ela nem sente a minha falta. Sei que a amo de uma forma avassaladora. Faço tudo por ela. Até ter estes empregos idiotas que tenho. Mas foram eles que permitiram pagar as contas enquanto Valéria tirava o curso, porque nessa altura ela só tinha um part-time de vez em quando. Todo o tempo era para aulas, para projectos, para estudar. Não sei se um dia ainda poderei recuperar estes anos perdidos em empregos idiotas. Valéria diz que sim. Que quer que eu volte à faculdade e termine de vez o curso que eu já tinha largado quando a conheci. Não sei se ainda quero lutar para ser geógrafo. A ver vamos..... Para já adoro os finais de dia. Adoro estar aqui na cozinha entre panelas e caçarolas, entre molhos e especiarias, entre o arroz e as massas, as carnes e os mariscos, que cozinho para mim e Valéria. Adoro sabê-la na sala ao lado a passar a ferro as camisas que ela usa com os fatos de corte discreto combinados com os acessórios mais bizarros que encontra, e com os loucos sapatos de mil cores. Adoro saber que depois de vermos as notícias do dia nos vamos amar. Adoro saber que ela me vai dar aquele sorriso lindo! Adoro! Adoro saber que hoje ainda é 2.ª feira e que uma semana inteirinha está à nossa espera.

4 comentários:

Madalena disse...

Também Adoro, aliás como sempre, os teus textos.

De facto, a vida a dois implica sacrifícios e também algumas cedências. E se amamos mm a outra pessoa, tudo irá valer a pena.

Sorri quando vi o nome que escolheste para a personagem feminina. Algures na minha adolescência quis mudar o meu nome para Valéria. Não perguntem porquê.

Carminho disse...

Olha ainda bem que o rapaz gosta da cozinha, se não ia ser uma fomeca lá em casa que nem te digo!!

;)

Olha a vida a dois nem sempre está sincronizada e as pessoas têm que aproveitar todos os minutinhos, os nanossegundinhos!!

É a bida...
Para uns é mais fácil, para outros mais complicado. Mas quando se corre por gosto...!

Unknown disse...

Comecei a escrever o "Valéria" há já uns dias.

As palavras surgiam no ecrã do computador de forma quase avassaladora. Como sempre no meu processo de escita.

Mas havia algo que não encaixava. Era o nome da personagem feminina, e que haveria de dar nome ao texto. Antes deste, teve 2 nomes diferentes. Mas nenhum soava bem. O nome não ligava com a história que eu contava!!
Até que de repente me surgiu o nome Valéria. Escrevi-o na frase em que estava a juntar as letras das minhas ideias.
Sim, era perfeito! Esta era a história de Valéria!

Porque?
Não sei.
É algo que me transcende. Da mesma forma que a Maria Rita foi Maria Rita, a Marta Raquel foi Marta Raquel, o Fernando foi Fernando, a Maria só Maria e as Princesas foram Litlle Princess, Princess Lily, Princesinha e Princesa dos Longos Cabelos Escuros!!!

Não consigo explicar.....

Anónimo disse...

Disseram-me que um homem nunca falaria assim como escreveste Maria.

Será??????