(De)Lírios
Não preguei olho esta noite. Passei-a às claras, no escuro do nosso quarto. A minha cabeça transformou-se em chumbo e os meus lábios na secura de uma ameixa murcha. Ao meu lado, o jarro de água está vazio. Desta vez, tomei dose dupla e nada – os comprimidos já não fazem efeito. Sinto-me sem vontade de nada. Só vejo branco em meu redor, mas não me sinto tranquila. Acho que me sinto até agoniada com este excesso de luz.
É como se tudo na minha vida se resumisse a duas cores – o negro da noite e o branco das paredes, dos lençóis, da luz que entra por entre as amplas janelas…
Uma espécie de código binário apossou-se de toda a minha vida. Só os opostos existem: ora me sinto feliz, ora desolada; umas vezes sei que quero o Mundo, noutras, quero deixar de existir nele.
Olho para o meu roupeiro e tudo é preto e branco/branco e preto. Preto para a noite - porque é sóbrio e elegante, porque seduz como a “Natasha Kinsky, no filme Felina “ - (como me disseste uma vez).
Roupa branca para usar durante o dia – porque contrasta com o negro dos meus cabelos, porque combina com a minha pele alva e os meus olhos azuis.
Lembro-me de teres sussurrado que eu era o teu pedaço de céu, porque era branca e suave como as nuvens, tinha o azul celeste espelhado nos olhos e a escuridão da noite cravada nos cabelos. Foi nesse dia exacto que me rendi a ti. Em que te tornei estrela do meu céu.
Queria tanto poder sonhar contigo, mas a insónia dos últimos tempos não o consente. A minha mente está exausta e drogada em demasia para conseguir ir lá atrás buscar esses pedaços de ser e de nós.
Desde que partiste que não durmo. Não consigo preencher o vazio que deixaste na cama. Ando nela às voltas, tentando manter quente o teu lugar, como se isso te tornasse mais presente. Mas de nada serve. Preciso de ti, do teu abraço, da tua respiração, do teu sossego.
Branco é a cor da pureza. Pela lógica, será o preto necessariamente impuro? Respondo que não. Que é na escuridão, na absoluta cegueira que se descobre a pureza. É negra a cor da manta que a cobre e protege, a oculta e refugia de tudo aquilo que a possa contaminar, perturbar até.
Tal e qual o nosso casamento – a união entre a força e a vulnerabilidade. Entre a brancura do meu vestido e o negro do teu solene fraque. Pelo menos, foi isso que senti no momento em que a minha mão te foi entregue pela do meu pai. Não pensei muito sobre o assunto nessa altura mas, passados os primeiros tempos, esse desconforto começou a surgir e a questionar-me “Alguma vez terás sido dona de ti própria? Ou és forma humana de frágil cristal que simplesmente mudou de vigilante?”
Assaltam-me a mente todas as formas de mulher que gostaria de ter sido. Uma negra de lábios volumosos e cabelos curtinhos, rentes à nuca, enrolada em tecidos artesanais, coloridos e rudes, com os pés gastos pela rua e as palmas das mãos brancas e marcadas pela apanha de algodão no campo. Avassaladora nas suas paixões, quente em todas as estações do ano e com olhos avelã, esbugalhados, que lançam uma infinita doçura em tudo o que contemplam!
Terei certamente um lado sádico, mas gosto do contraste entre o negro da pele e o vermelho intenso do sangue. Imagino o sangue a jorrar pelo dedo que se magoa por entre os campos de algodão. Sem achaques e com naturalidade, esta mulher leva o dedo à sua boca e suga o sangue até este estancar. Por entre a terra e as plantas do algodão, vêem-se gotas de sangue e projectam-se figuras sem nome.
Comigo, nunca nada se passou assim. Raras foram as vezes em que os meus pés provaram a terra. Lembro-me de me ter magoado muito poucas vezes na infância, tal era a vigilância cerrada da minha ama. Talvez um arranhão no joelho que cedeu numa escada trapaceira, ou um pequeno corte na folha branca de papel na qual tentei, em vão e numa casual tentativa, iniciar a escrita do meu diário.
Recordo o fascínio por mim sentido ao ver um menino da escola a sangrar do nariz. Não percebia porque é que isso acontecia, mas divertia-me com a cena da professora sobressaltada, a correr em sua direcção com um lenço de papel para impedir que o sangue espirrasse em cima dos seus livros e das fichas de trabalho.
Chegara mesmo a perguntar à minha mãe porque motivo não sangrava mais vezes e, ela, com a sua fleumática frase habitual: ” Delírios, Maria Madalena… delírios…Vá procurar a sua ama e deixe-me sossegar a cabeça”.
E eu assim ia.
Não deixa de ser curioso o facto de sempre me ter vestido de branco e negro e de nunca ter comprado algo em vermelho. Podia ter comprado aquele vestido que vira numa montra em Nice, cujo escarlate me saltou ao olho. Mas disseste-me que o jantar de aniversário dos teus pais merecia algo mais discreto. Um vestido preto – um básico, ‘’ Intemporal como tu” – disseste-me.
No entanto, vinguei-me de ti nessa noite e ofereci um grande ramo de rosas vermelhas à tua mãe. Frescas, em botão, envoltas em folhas de palmeira e atadas em fio do norte. Sussurraste-me à sobremesa que havia sido “ precipitada” na escolha “Podias ter-me pedido ajuda na escolha, querida. A mamã aprecia outro tipo de flores. Olha, por exemplo, umas violetas ou até mesmo uns jarros. São mais neutros e ligam bem com tudo”. Pois, e passam verdadeiramente despercebidos, com sua aparência insípida e marginal. Da jarra, as rosas passaram para o lixo, logo no dia seguinte. Pensaram que aceitei com passividade a história mal contada de que tinham sido oferecidas à capela, em honra à santa padroeira, em agradecimento da celebração dos 48 anos de matrimónio. Sei bem que o agradecimento tinha sido em forma de aperto de mão e cheque endossado à Igreja. Pelas almas - claro ! E pela dedicação dominical do Padre Fernando… O mesmo Padre Fernando que nos casou debaixo da neblina primaveril, na quinta vimaranense da tua família.
Mas deixa, já te perdoei isso e tanto mais. Não esqueci, mas perdoei.
Agora que aqui estou, com preguiça da vida e com carência de incontáveis horas de sono, olho para a poltrona que está perto da porta do quarto. Mais ao lado, encostada, repousa uma caixa de cartão branca. Estranho… não me recordo de a ter colocado ali, nem sequer de antes a ter visto. O que terá dentro?
Começa a crescer uma curiosidade, estranha até, perante uma simples caixa de cartão branca. Mas o corpo não se levanta para ir lá e saciar esta comichão que sinto!
De repente, uma reserva de energia – das últimas, talvez – toma-me e estou em pé, descalça, junto à caixa. Sento-me com ela ao colo na poltrona. Ao levantar a tampa, eis perante mim a luz que ansiava! Um ramo de lírios brancos! Lírios, a flor da pureza!
Desço as escadas desenfreadamente e dirijo-me ao jardim e lá o encontro – o negro que me protege, o calor da minha cama, a estrela do meu céu, o guardador da minha fragilidade. Havia regressado.
“ Fizeste-me tanta falta. “ – disse-lhe, enquanto repousava no seu abraço.
Não me respondeu que também lhe tinha feito falta a si, mas os (de)lírios disseram-no em todas as vozes.
(P.S.- Acima, um dos quadros que em mim teve mais impacto na longa e saborosa visita que fiz à Tate Modern Museum. Às meninas que em breve visitarão a cidade, lanço este 'teaser' das maravilhas que vos esperam! O texto, esse, para algumas é já conhecido. Resolvi partilhá-lo. Uma ode, digamos, à minha flor preferida, os lírios ...Ofereço-vos então flores...)
Carminho
3 comentários:
Uma delícia esta prenda. Obrigada. Muito obrigada.
Não acrescento mais nada. Não é preciso.
Tu és a nossa Li(rio).
Carminho minha linda,
Dá-nos mais dos teus lirios e delirios... das tuas histórias.... são elas que nos confortam....
Para quando uma nova história?
Um grande obrigado por esses escritos tão belos.
Grande beijo da tua Maria
Lindo, diria eu!
E acho que mais do que o nosso Li(rio) és o nosso (de)Li(rio)!
Beijo
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